Rachador
A indústria do vime na Camacha foi, até meados do Séc. XX, umas das principais atividades económicas desta vila
serrana e a sua importância social era de tal ordem que famílias inteiras dali retiravam, a par da atividade
agrícola, o seu maior sustento.
Do campo à “tenda do trabalho”, muito era o esforço e a perseverança necessários para fazer surgir tais
utensílios, conhecidos por muitos – principalmente pelos forasteiros – de trabalho de elevada qualidade e
perfeição. Mas sempre se ganhou muito pouco e o corpo, esse, pagou-se, sempre bem caro.
A mão é ferramenta, motor de toda
a transformação, e a ela associa-se o podão, o passador ou o martelo. Contudo, é o rachador que de entre as
demais ferramentas me desperta interesse, não só por se tratar de um objecto talhado em madeira (de pereiro,
urze, bucho entre outras), por cada um dos artesãos – para se adequar
ao formato da sua mão e servir de extensão desta – mas, também, pela sua forma
e função: este objecto cilíndrico, ligeiramente arredondado no topo e com incisões nas faces laterais, era
tudo quanto bastava para abrir agilmente, mas com a necessária mestria, uma haste de vime em outras três, por
vezes quatro (em concordância com
a espessura do vime), e assim obter a liaça. Trata-se de uma ferramenta rudimentar
que condensa, a partir da sua forma e do seu uso, diversas dimensões simbólicas que me interessam considerar para
a idealização de um objecto escultórico capaz de atender ao complexo contexto a que esta actividade estava
votada. Interessa-me, desde logo, o facto de o rachador ser, antes de mais, o fruto de um conhecimento prático cuja
tipo- logia passou de geração em geração, mas, também, pela coincidência material que podemos estabelecer
entre a haste de um Salgueiro – Salix viminalis – e a haste de uma outra planta lenhosa.
Esta combinação remete-nos, ainda que de forma indirecta, para um património
paisagístico, e contextualiza uma relação mais vasta entre o homem e a natureza. A sua configuração
predominantemente triádica poderá conter uma conotação temporal (passado, presente e futuro), invocar as Idades
do Homem (jovem, adulto, idoso) ou o ciclo da vida (nascimento, crescimento e morte).
Interessa pensar a ação do corpo e os processos que estão na génese desta actividade e a partir daí originar
um marco,
um lugar de celebração do indivíduo mas também do colectivo.
Este conjunto de rachadores encontrados e registados, contribui para um maior envolvimento da comunidade afeta a
esta comemoração, conferindo-lhe uma identidade, uma memória coletiva e valoriza a importância da sua
conservação ao nível etnográfico.
Hélder Folgado
MÃO SEGURA
Por António Barros
Se há uma mão que afirma hirta e incisa gerando o deslumbramento e a proliferação, há outra mão que
segura
precisa na delicadeza do equilíbrio e sustentação
do rigor.
Esta lição, gerada no resgate que o olhar formula sobre o gesto, resulta estruturante, denunciando um ponto
de
tensão. Esta disciplina dos limites com que a mão, a outra mão, nos contempla, traz-nos a consciência de
raiz. De raiz que comunga com o corpo e, nesse tanto, faz voltar ao corpo e à importância deste
como lugar.
A península que sai da mão com vime de salgueiro, esse lugar aberto pela escultura rachador,
dá-nos agora a soltura da flor e uma nova liberdade. A segunda liberdade saída da
contenção e do exercício da precisão que almeja a certeza. Mas mesmo sem certezas tangíveis a segunda
mão
segura o movimento. Alberga o desejo. E o desejo, aqui, é de multiplicação. Do vigor do plural e
de todas
as veias para a gestação do devir da obra. Esta vascularização gritada a partir da
mão que recebe. Da mão que acolhe o que
a primeira mão afirma rasgando a matéria primeira, formula-se como um fogo hirto. Uma ascensão. Como o fogo
lançado que
se exalta no céu em abertura vulgar. Nessa euforia do desenho dado pela sombra quando o ramo
multiplicado
enfrenta o sol.
Esta soltura solene, a de posicionar-se como em adoração ao sol, reside com
vigor na minha memória de infância, mas a coreografia narrada pelos artesãos geradores das linhas dadas
pela
primeira mão conduzindo o rachador, toda essa dinâmica, é o que mais acende o vivenciado nesses
tempos.
Tempos em que eu fazia caminho longo para contemplar esta narrativa. Esta escrita plural. Essa que
trazia dentro de si, entre
uma mão e a outra, uma musicalidade única. Harmónicos gRitos. Silenciosos gritos em ritos soluçantes mas
vigorosos.
Toda esta orquestração repetia o dizer convulso de que há uma mão que rompe, mas outra que segura.
Definindo o tempo, esse que convida o devir do sentido. Do
sentido do chegar da arte como nova natureza, a de Novalis. Uma segunda mão.
O gigantismo destes brinquedos, e todo esse dançar sentado como que o corpo ancorasse suas raízes na terra,
trazia um proliferar como que os dedos repentinamente crescessem da mão. Toda uma magia que me deixava
olhando para o teatro das sombras gerado no espelho de água esquecido no chão depois da chuva.
Esta pautização imagética traz o desenho, mas também a escrita. Guestáltica. Libertadora. Toda uma
lição de liberdade de saber. De ser. De estar. Certo de que há uma mão que dá obrigando outra que
segure. Todos os dedos das mãos, seja qual for a mão segura. Mão segura. Sempre uma segunda mão. Num
querer
dar flor. Outra.
António Barros
Hélder Folgado
Orlanda Folgado
Hélder João N. P. Folgado
Daniel Folgado
Fotografia
Hélder Folgado
Texto
Hélder Folgado
António Barros
Edição
Câmara Municipal de Santa Cruz
Design Gráfico:
Ana Freitas, Many Islands
Agradecimentos
Eduardo Costa
Elia Ascensão
Emanuel Gaspar
Francisco Henriques
Humberto Teixeira de Jesus
João Almeida
PORTA33
ISSN 978-972-98668-9-0
Tiragem: 1000 exemplares
Impressão: Gráfica Maiadouro