Gravitas generosa
Mas se eles, os infinitamente mortos, nos despertassem para um exemplo,
vê: talvez nos apontassem os cachos de flores pendentes
das avelaneiras vazias, ou
nos indicassem a chuva, que na Primavera cai sobre a terra escura. —
E nós, que pensamos na felicidade
ascendente, sentiríamos essa emoção,
que quase nos confunde,
quando uma coisa feliz cai.
Rainer Maria Rilke
1.
Melancolia é o nome de uma relação com o tempo, de uma relação com a morte, talvez com
Deus.
O Ocidente pensou sempre essa relação na sua ambiguidade, quer dizer, como uma
separação.
Somos tempo e fora do tempo, estamos vivos conscientes da morte, sentimos Deus na sua
ausência. A melancolia é a disposição física e anímica que esta polaridade instala, uma
oscilação entre tristeza e entusiasmo, depressão e euforia, apatia e furor. Entre ser e
não
ser, nascer e morrer, o melancólico oscila, suspenso na pergunta sobre se a existência,
que
acontece no tempo e que o tempo ameaça, é um bem ou um mal.
Porquê o ser?, perguntamos, desde os gregos, formulando a questão que habita o
melancólico.
Porquê ser? Porquê a vida, o mundo, sendo as coisas como são, temporais e temporárias?
Não
seria melhor não ser?
Mas a melancolia não é um pessimismo existencial, não é uma argumentação contra a vida,
não
é uma teoria. A melancolia não é um ponto de vista determinado, um certo modo de pensar,
mas
um modo de sofrer, um sofrimento — o espanto doloroso e amoroso porque aquilo que faz
ser (o
tempo, Deus) é também o que o desfaz, o que dissolve tudo em nada. O melancólico sofre
de
viver a morte que vai chegar, sofre por tudo e pelo nada a que tudo está prometido. A
ambiguidade radica aqui, e ela é irredutível. Doença ou genialidade, loucura ou lucidez,
paralisia ou criação — como pôde este sofrimento ser também associado, na nossa cultura,
a
uma benesse? O que pode haver de positivo, de afirmativo, nesta disposição dolorosa de
objecto indeterminado, nisto que dói por tudo e por nada, na tristeza sem causa aparente
que
caracteriza o melancólico, o deprimido, o enlutado?
Eis o que a exposição de Hélder Folgado nos convida a pensar.
2.
A melancolia é mítica, mítica e grega, como a língua que lhe deu o nome. Os mitos de
Ájax, Belerofonte ou Hércules descrevem o melancólico como um herói que sofre as dores
do trágico fascínio entre humano e divino. Na sua versão mítica, o melancólico vive na
polaridade entre o físico e o metafísico, existe entre esses dois extremos, tendendo ora
para um, ora para o outro, não ocupando ou pertencendo, verdadeiramente, a nenhum deles.
Ele é o herói que aflorou a infinitude divina e a perdeu, e a melancolia é o sofrimento
por essa perda, pela coincidência não consumada do humano com o divino, um sofrimento
sem consolo, sem remédio, neste ou noutro mundo. Quando parecem ser e poder tudo, estes
heróis compreendem que são nada, que são a sombria aparência de um sonho
nocturno com
que Eurípides define, pela boca de Hércules, a vida humana.
Os deuses são os ilimitados, os seres da vida infinita, os imortais. A vida humana, pelo
contrário, é a vida breve, a vida que nasce para morrer, passageira como um sonho e
inconsistente como uma sombra, assombrada ela própria por uma força que a excede e
vence, pela vida incomparável, e inalcançável, dos deuses. Repelido pelo que o atrai,
expulso do e pelo divino, o melancólico vive perdido, também entre os homens. Erra sem
esperança ou propósito, como uma sombra, nem vivo, nem morto, oscilando entre a glória e
a desgraça num mundo que se lhe tornou hostil ou indiferente. Eis a lição mítica grega:
o melancólico tende para o que excede os seus limites, para o divino ilimitado, mas
assim que toca o limiar que o separa de deus, cai como o Sol poente, como Belerofonte e
o seu cavalo alado. Quando incorreu no ódio de todos os deuses, diz Homero de
Belerofonte, errou sozinho pelas planícies, devorando o seu coração e evitando todos
os
seres humanos.
3.
Comer ou devorar o coração é a imagem excelente da contradição que consome o
melancólico, e da qual, para os gregos, nenhum deus o pode salvar. A imagem, de uma
violência pungente, dá conta do movimento que desarma os limites do nosso pensamento
lógico, de uma fome que se alimenta da sua própria abundância, do dar com uma mão o que
a outra tira, do infernal movimento cíclico que encontramos no gesto de outra figura
mítica da melancolia, a figura de Cronos, o deus do tempo.
Porque é que o deus do Tempo é melancólico? O que ensina a contradição que o define,
expressa nas duas versões da sua história? Como pode o sinistro deus que engole os
próprios filhos ser igualmente o deus da felicidade?
A contradição indica a ambiguidade de um mal que convive com um bem, dando conta de duas
experiências opostas do tempo e da possibilidade, não da sua reconciliação, mas da sua
coexistência. Numa versão da sua história, Cronos é o deus patricida e infanticida,
filho da Terra e do Céu, e personifica o tempo como uma interminável voragem de si
mesmo. Depois de castrar o seu pai para escapar ao tempo que lhe deu a vida, Cronos quer
durar (e dominar), devorando o tempo futuro para escapar à morte. Mata, assim, para não
morrer, ansiando anular a força geradora do passado e suprimir a possibilidade da
passagem para outro tempo. Mas sem passagem o mundo pára, a vida cessa, deixa de ser. E
o tempo parado, detido, é a morte, é o fim do mundo. O deus do tempo não pode
vencer, então, a força que ele próprio personifica e que o atormenta, tormento esse que
ele não cessa, porém, de alimentar. Pois o tempo cronológico é o tempo da sucessão, uma
força que vive de suprimir o que foi e o que será, devorando-se a si mesma,
consumindo-se para existir. Cronos é, portanto, nesta versão do mito, o tempo que não
escapa ao tempo, ao imparável encadeamento de geração e morte de que o tempo é feito (e
desfeito), e da qual engolir os próprios filhos é, tal como devorar o coração, uma
imagem exemplar.
A versão hesiódica de Cronos sugere, por seu lado, outra modalidade da suspensão do
tempo cronológico. Aí, Cronos é senhor na Idade de Ouro da humanidade e reina na Ilha
dos Bem-Aventurados, uma versão grega do paraíso, onde humano e divino não conhecem
separação. O mito fala de um tempo a salvo do tempo, um tempo de leveza ou de graça,
imune à cronologia. O tempo paradisíaco é um tempo espacializado, vivido como um único
instante sem partes, não sujeito à passagem, à degradação, à transformação, quer dizer,
integral, indivisível, total. Cronos é, então, aqui o nome de um tempo que o tempo não
ameaça, de um tempo suspenso ou não linear em que as partes coexistem sem se anularem
reciprocamente. Assim, em vez da sucessão voraz, Cronos figura aqui a eternidade, essa
ilha mágica, mas real, onde o tempo cabe todo.
Que esta experiência do tempo tenha sido miticamente associada ao deus por excelência
melancólico abre, então, uma outra perspectiva sobre a melancolia, na qual o deus que
sofre como nenhum outro a passagem do tempo é o mesmo que tutela um tempo suspenso,
feliz e pródigo, o tempo que interrompe o tempo, o desejado intervalo na sinistra
continuidade cronológica. Mas esta versão da melancolia, em que o tempo se liberta das
suas cadeias de chumbo (em que se liberta de si mesmo), não despede, contudo, a outra.
Ela pressupõe-na, e o que a coexistência da versão infernal e paradisíaca de Cronos
ensina é, então, que a aguda consciência do tempo em que a melancolia consiste, a
angústia pela transitoriedade da vida, não é separável da alegria pela suspensão do
trânsito de existir. Oprimido ou deprimido pelo imparável movimento devorador,
experimentando o tempo como uma infernal repetição da mesma voragem de tudo, da mesma
passagem a nada, o melancólico vive-o como o mal de que gostaria de se libertar, anseia
parar, sair do tempo. Mas o que as duas versões de Cronos nos convidam a pensar é a
possibilidade de a incessante sucessão temporal admitir pausas, e de a suspensão do
tempo cronológico não requerer a sua anulação, a supressão do seu movimento contínuo,
mas uma exposição a essa continuidade, e ao sofrimento que ela implica. O melancólico a
quem a passagem do tempo aflige é o ser sumamente susceptível à felicidade da sua
suspensão, ao bem que habita no coração do mal. O melancólico sofre, então, de um mal
que contém o seu próprio remédio.
4.
Não deixando de referir as versões míticas da melancolia, Aristóteles procurou uma resposta fisiológica e filosófica para o enigma que ela apresenta, seguindo a doutrina hipocrática dos humores. No entanto, ao contrário desta última, para Aristóteles a melancolia não é uma doença, a perturbação de um estado naturalmente equilibrado, mas a manifestação da natureza instável e excessiva ou excepcional de alguns seres humanos, já não heróis nem semi-deuses, mas artistas, filósofos ou estadistas. No seu entender, tanto a instabilidade como a excepcionalidade do melancólico devem-se à natureza ou à fisiologia, muito em particular, às propriedades da substância que ficou conhecida como bílis negra. A bílis negra é, uma matéria orgânica com sede no corpo humano, que Aristóteles descreve como sendo fundamentalmente inconstante ou “ventosa”, ora fria, ora quente, e sumamente vulnerável às circunstâncias, aos acasos, aos acidentes do tempo. Esta substância ou humor age sobre o carácter torna-o ora calmo, ora exaltado, ora taciturno, ora eloquente, ora amável, ora colérico. Sofrendo as oscilações físicas, térmicas e éticas da bílis negra, a melancólico aristotélico vive entre estados extremos, não se fixando ou não pertencendo propriamente a nenhum, e a sua excessiva vulnerabilidade aos acasos está na origem tanto dos males que ele sofre, quanto dos bens que, de acordo com Aristóteles, ele consegue alcançar apesar ou por causa desse mesmo sofrimento. Abandonando, assim, a referência ao divino, e concentrando-se numa físico-química da experiência melancólica, Aristóteles mantém a referência a uma força excessiva de consequências ambíguas, a um mal que é indissociável de um bem. Um excesso que nos pode tornar excepcionais, e ao qual todos somos, na verdade, susceptíveis.
5.
O lado abençoado, agraciado, que os gregos reconheceram à melancolia, o bem que nela convive com o mal em que ela se pode tornar, foi repensado durante a Idade Média e reformulado na compreensão medieval da experiência melancólica. Rebaptizada como acédia, mas igualmente marcada por um determinado entendimento do tempo, da morte e de Deus, a melancolia transforma-se num vício. Assim, ao contrário do que acontecia com a melancolia grega, onde a doença, o mal, admitia benesses, como o mito de Cronos e a interpretação aristotélica sugerem, a acédia medieval define-se como inteiramente maligna, ela é um pecado mortal de que padecem, estranhamente, aqueles que dele mais pareciam protegidos, alguns monjes e ascetas que se dedicavam à vida contemplativa. Oscilando entre um estado de profunda apatia ou abatimento, um ensimesmamento, uma indiferença ao mundo e à vida, e uma agitação e inquietação físicas e anímicas, que impediam a serenidade e a concentração necessárias à oração e à contemplação, o melancólico era agora considerado como uma vítima do diabo, da tentação do “demónio do meridiano” ou “demónio do meio-dia”, a hora em que o tempo parece parar. Este entendimento da melancolia é marcado por uma ideia já não grega de deus, do tempo e da morte. O deus cristão é a promessa da ansiada coincidência humana com o divino, com o eterno, com o ilimitado, ele é, portanto, uma solução para o problema do tempo cronológico, um corte que interrompe definitivamente o incessante fluxo temporal. Ao contrário dos deuses gregos, o deus cristão é sem ambiguidades: salva das dores que o tempo inflige, liberta do peso do tempo e da vida na Terra, tira os pecados do mundo. A sua bondade e misericórdia são infinitas, inequívocas e todo-poderosas. Mas a vítima de acédia sente-se excluída da graça divina: a sua experiência é a de um profundo vazio, a sua vida é preenchida pela dolorosa ausência de Deus. A acédia é o sofrimento por esta ausência, que esvazia a própria vida contemplativa de sentido. E o torpor em que melancólico cai é associado ao ócio e ao pecado da preguiça, a uma inactividade entendida como uma estéril dispersão de si, como um desperdício improdutivo e indevido do tempo. A melancolia passa, então, a significar o afastamento ou um retraimento perante Deus e o seu amor salvífico e, portanto, a perdição da alma. A acédia é a incapacidade para o amor de Deus, uma preguiça do coração vivida como um estanho, inexplicável apego à vida no tempo mundano e terreno. Ao melancólico não é dada a experiência do paraíso, ele é o perdido ou o desgraçado a quem está vedada a comunhão com Deus, a experiência da plenitude, do fim da separação de humano e divino, o gaudium de Tomás d’Aquino, que é a suprema alegria de uma eterna suspensão do tempo. A sua existência é um inferno sem termo, uma interminável repetição de instantes idênticos, um ininterrupto prolongamento do mesmo nada. O tempo vazio de Deus é um tempo estagnado e homogéneo, um contínuo sem saídas, sem aberturas, sem esperança num amanhã diferente. A acédia é a resposta possível a este nada sob a forma de uma contemplação ociosa e impotente do mundo, que apenas reproduz a ausência da graça. Ela transforma-se, assim, num mal, e mesmo no mal supremo — no pecado mortal da preguiça, a mãe de todos os vícios, que faz do melancólico um inútil, legitimando o seu desgosto e o abandono de Deus.
6.
A maldição medieval do melancólico conhecerá, contudo, um revés no Renascimento, com a reaparição de Cronos na sua versão neolatina e neoplatónica, que é igualmente uma reformulação da interpretação fisiológica e aristotélica da melancolia. O deus melancólico recebe então o nome do planeta Saturno, sob o signo do qual a exposição de Hélder Folgado se coloca explicitamente, e que fora já o nome romano dado ao deus Cronos, mantendo-se na versão romana a associação desse deus caído, destronado e expulso pelo seu filho, com uma época próspera, uma Idade de Ouro da humanidade. Saturno é, como Cronos, um deus caído em desgraça, abatido, pesaroso, um deus em queda, atraído para baixo, para o fundo, para a terra, e simultaneamente, em virtude da mesma atracção, o deus conhecedor dos mistérios da matéria, dos seus poderes de transmutação e regeneração, das metamorfoses cíclicas da vida e da morte, o deus patrono da agricultura. Com a figura de Saturno retorna, assim, a ambiguidade característica da melancolia, a sua oscilação entre os maiores bens e os maiores males, que reflecte, como ensinou Panofksky, a compreensão renascentista e humanista do tempo e do divino, antecipando também a compreensão moderna da sua talvez irremediável separação. Os melancólicos do Renascimento serão chamados filhos de Saturno por referência ao planeta com o mesmo nome e às suas características particulares, e que Marsilio Ficino via manifestas na disposição melancólica e na polaridade que lhe é própria. Saturno é, por um lado, o planeta amigo dos homens, vulnerável à força da gravidade e atraído pela Terra e pelos seus movimentos temporais cíclicos e íntimos, como o ciclo das estações do ano ou o das relações entre os elementos. Por outro lado, e ao mesmo tempo, sendo o astro mais afastado do Sol (o sétimo no sistema planetário então conhecido), Saturno era considerado o planeta mais frio, mais isolado, mais escuro, e também o de órbita mais lenta. Saturno é, então, o nome de um astro limite, exposto em igual medida tanto à atracção pela Terra, morada dos homens, quanto à infinitude cósmica com que confina. Esta polaridade ou ambiguidade não era sem influência sobre os homens, em particular sobre os melancólicos, também eles igual e simultaneamente atraídos por tudo o que é terreno, mundano, temporário, material e mortal, e pela vastidão inumana, fora do tempo e do espaço terrestres, da dimensão celeste. Na sua versão renascentista, o melancólico vive, portanto, novamente suspenso entre proximidade e distância da existência terrena, tendendo, como o planeta que o tutela, para os segredos da natureza e da vida física dos elementos, para a vitalidade da matéria orgânica, sempre transitória ou metamórfica, ao mesmo tempo que a sua disposição o inclina no sentido oposto, na direcção de um recuo contemplativo do mundo e das transições terrenas, no sentido de uma perspectiva cósmica ou total das coisas da qual o mundo e a vida na Terra são apenas uma pequena parte. Não sendo, como a acédia medieval não era, sem perigos, nesta tradição do Renascimento a melancolia deixa, então, de ser simplesmente condenada, nela voltando a ser reconhecido um valor, a possibilidade de um bem. Embora sombrio e de algum modo estranho, distanciado ou alheio ao mundo que o rodeia, embora dado a um recolhimento que o afasta das actividades mundanas e a um ensimesmamento que pode raiar a patologia, a tendência do melancólico para a contemplação e a ascese, para a consideração daquilo que é distante e sideral, dignificam-no tanto quanto as descobertas — técnicas, artísticas e científicas — do seu estudo e interesse pelas combinações e metamorfoses elementares. Ele conjuga, portanto, em si, na sua disposição ambígua, no seu comportamento, até na atitude corporal com a qual é, as mais das vezes, representado, o elemento terrestre ou terreno, que também o constitui, e a influência dos céus e dos astros mais distante da Terra. A melancolia passa, assim, a designar esta polaridade entre o mais próximo e o mais longínquo, esta tensão na qual um pendor para a concentração e para a auto-concentração, quer dizer, um tender para o seu próprio centro de gravidade, convive com a fixação numa ausência sempre pressentida e que dispersa a atenção por tudo o que é estranho. Fiel à Terra a que pertence, e a cujos fenómenos dedica uma atenção meticulosa, obsessiva, apaixonada, o melancólico dispõe-se, então, a penetrar no coração das coisas através de uma concentração em si mesmo, no seu próprio coração. O peso, a seriedade ou a gravidade melancólicas são, assim, como que dotadas das asas da contemplação dos mistérios do universo, e de maligna e amaldiçoada ou pecaminosa a melancolia torna-se alada, inspirada ou, para o dizer como Ficino, generosa.
Gravitas generosa
But if they, the infinitely dead, would awaken us to an example,
see: maybe they'd point out the bunches of flowers hanging of empty hazels,
or
indicate us the rain, which in Spring falls on the dark land. —
And we, who think of happiness
upward, we would feel that emotion,
which almost confuses us,
when a happy thing falls.
Rainer Maria Rilke
1.
Melancholy is the name of a relationship with time, of a relationship with death,
perhaps
with God.
The west has always thought of this relationship in its ambiguity, that is, as a
separation.
We are time and outside of time, we are alive aware of death, we feel God in his
absence.
Melancholy is the physical and emotional disposition that this polarity sets in, an
oscillation between sadness and enthusiasm, depression and euphoria, apathy and anger.
Between being and not being, being born and dying, the melancholic oscillates, suspended
in
the question of whether existence, which happens in time and that time threatens, is
good or
evil.
Why the being?, we ask, since the Greek, formulating the question that inhabits the
melancholic. Why being? Why life, the world, being things as they are, temporal and
temporary? Wouldn't it be better not to be?
But melancholy is not an existential pessimism, it is not an argument against life, it
is
not a theory. Melancholy is not a determined point of view, a certain way of thinking,
but a
way of suffering, a grief — the painful and loving amazement because what makes it be
(time,
God) is also what undoes it, what dissolves it into nothing. The melancholic suffers
from
living the death that is coming, he suffers for everything and for nothing to which all
things are promised. The ambiguity is established here, and it is relentless. Illness or
genius, madness or lucidity, paralysis or creation - how could this suffering also be
related, in our culture, to a boon? What can be positive and affirmative about this
painful
disposition of an undetermined object, in which it hurts for everything and nothing, in
sadness without apparent cause which characterises the melancholic, the depressed, the
grieving?
This is what Hélder Folgado's exhibition invites us to reflect upon.
2.
Melancholy is mythical, mythical and Greek, like the Language that gave it its name. The
myths of Ajax, Bellerophon or Hercules describe the melancholic as a hero who suffers
the pain of the tragic fascination between human and divine. In its mythical version,
the melancholic lives in the polarity between the physical and the metaphysical, it
exists between these two extremes, tending either to one, or to the other, not occupying
or truly belonging to either. He is the hero who has touched upon a divine infinity and
has lost it, and melancholy is the suffering for that loss, for the coincidence not
consummated of the human with the divine, a suffering without consolation, without
remedy, in this or another world. When they appear to be and to power all, these heroes
understand that they are nothing, that they are the dark appearance of a nocturnal
dream
that Euripides defines, by the words of Hercules, the human life.
The gods are the unlimited, the beings of endless life, the immortal. Human life, on the
contrary, is the brief life, the life that is born to die, temporary as a dream and
inconsistent as a shadow, haunted itself by a strength that exceeds and overcomes it, by
the incomparable and unreachable life of the gods. Repelled by what attracts him,
banished from and by the divine, the melancholic lives lost, also among men. He makes
mistakes without hope or purpose, like a shadow, neither alive nor dead, oscillating
between glory and disgrace in a world that has become hostile or indifferent to him.
This is the mythical Greek lesson: the melancholic is inclined towards what exceeds his
limits, towards the unlimited divine, but as soon as he touches the limit that separates
him from god, he falls like the setting sun, like Bellerophon and his winged horse.
When
he suffered the hate of all gods, says Homer of Bellerophon, he wandered
alone across
the plains, devouring his heart and avoiding all human beings.
3.
Eating or devouring the heart is the excellent image of the contradiction that consumes
the melancholic, and from which, for the Greeks, no god can save him. The image, of a
poignant violence, reveals the movement that disarms the limits of our logical thinking,
of a hunger that feeds on its own abundance, of giving with one hand what the other
takes away, of the infernal cyclical movement that we find in the gesture of another
mythical figure of melancholy, the figure of Kronos, the god of time.
Why is the god of Time melancholic? What does the contradiction that defines him teach,
expressed in the two versions of his history? How can the sinister god, that swallows
his own children, also be the god of happiness?
Contradiction indicates the ambiguity of an evil that coexists with the good, realizing
two opposing experiences of time and the possibility, not of its reconciliation, but of
its coexistence. In one version of his story, Kronos is the patricidal and infanticide
god, son of Earth and Heaven, and personifies time as an endless voraciousness of
himself. After castrating his father to escape time that gave him life, Kronos wants to
last (and dominate), devouring the future time to escape death. He kills in order not to
die, longing to nullify the generating force of the past and suppress the possibility of
a passage to another time. But without passage the world stops, life ceases, it ceases
to be. And time stationary, held, it is death, it is the end of the world. The god of
time cannot, then overcome, the force which he himself embodies and torments him, a
torment which he does not cease to feed. For chronological time is the time of
succession, a force that lives by suppressing what was and what will be, devouring
itself, consuming itself in order to exist. Kronos is, therefore, in this version of
myth, the time that does not escape time, the unstoppable chain of generation and death
of which time is done (and undone), and from which to swallow one's own children is,
like devouring the heart, an exemplary image.
The hesiodic version of Kronos suggests, on the other hand, another way of suspending
chronological time. There, Kronos is lord in the Golden Age of humanity and reigns on
the Island of the Blessed, a Greek version of paradise, where human and divine know no
separation. The myth speaks of a time safe from time, a time of lightness or of grace,
immune to chronology. The paradisiacal time is a spatialized time, lived as a single
instant without parts, not subject to passage, to degradation, to transformation, that
is to say, whole, indivisible, total. Kronos is, then, the name of a time, that time
does not threaten, of a suspended or non-linear time in which the parts coexist without
invalidating each other. Thus, instead of the voracious succession, Kronos figures here
eternity, that magical but real island, where time fits completely.
That this experience of time, that has been mystically associated with the melancholy
god, opens then, another perspective on melancholy, in which the god who suffers like no
other, the passage of time is the same one who supervises a suspended time, happy and
prodigal, the time that interrupts time, the desired pause in the sinister chronological
continuity. But this version of melancholy, in which time frees itself from its lead
chains (that it frees itself), does not, however, dismiss the other. It assumes it, and
what the coexistence of the infernal and paradisiacal version of Kronos teaches is that
the acute awareness of the time in which melancholy consists, the anguish for the
transition of life, cannot be separated from the joy for the suspension of the transit
of existence. Oppressed or depressed by the unstoppable devouring movement, experiencing
time as an infernal repetition of the same voracity of everything, of the same passage
to nothing, the melancholic lives it as the evil from which he would like to free
himself, he yearns to stop, to leave time. But what the two versions of Kronos invite us
to think about is the possibility of the incessant temporal succession admitting pauses,
and of the suspension of chronological time not requiring its cancellation, the
suppression of its continuous movement, but an exposure to that continuity, and to the
suffering that it implies. The melancholy to whom the passage of time distresses is the
being extremely susceptible to the happiness of its suspension, to the good that lives
in the heart of evil. The melancholic suffers, then, from an evil that contains its own
remedy.
4.
While referring to mythical versions of melancholy, Aristotle sought a physiological and philosophical response to the enigma that it presents, following the Hippocratic doctrine of moods. However, unlike the last one, for Aristotle melancholy is not a disease, the disturbance of a naturally balanced state, but the manifestation of the unstable and excessive or exceptional nature of some human beings, no longer heroes or semi-gods, but artists, philosophers or statesmen. In his opinion, both the instability and the exceptionality of the melancholic are due to nature or physiology, in particular to the properties of the substance that has become known as black bile. Black bile is an organic matter based on the human body, which Aristotle describes as being fundamentally inconstant or "windy", sometimes cold, sometimes hot, and extremely vulnerable to circumstances, to hazards, to accidents of time. This substance or mood acts on character, making it either calm, exalted, taciturn, eloquent, gentle, or choleric. Suffering from the physical, thermal and ethical oscillations of black bile, the Aristotelian melancholic lives between extreme states, not settling down or belonging to none at all, and his excessive vulnerability to hazards is at the origin both of the evils he suffers and of the goods which, according to Aristotle, he manages to achieve despite or because of this same suffering. Thus, abandoning the reference to the divine, and focusing on the physic chemistry of the melancholic experience, Aristotle maintains the reference to an excessive force of ambiguous consequences, to an evil which is inseparable from a good. An excess which can make us exceptional, and to which we are all, in fact, susceptible.
5.
The blessed, grateful side, which the Greeks acknowledged to melancholy, the good that coexists in it with the evil it can become, was rethought during the Middle Ages and reformulated in the medieval understanding of the melancholic experience. Renamed an acedia but equally marked by a certain understanding of time, of death and of God, melancholy becomes a vice. Thus, unlike Greek melancholy, where the sickness, the evil, admitted blessings, as the myth of Kronos and the Aristotelian interpretation suggest, medieval acedia is defined as entirely malign, it is a mortal sin from which strangely suffer those who seemed most protected from it, some monks and ascetics who dedicated themselves to the contemplative life. Oscillating between a state of deep apathy or discouragement, a numbness, an indifference to the world and to life, and a physical and mental agitation and restlessness, which prevented them from the serenity and concentration necessary for prayer and contemplation, the melancholic was now considered a victim of the devil, of the temptation of the "meridian devil" or " the midday devil", the hour when time seems to stop. This understanding of melancholy is marked by a no longer Greek idea of god, of time and death. The Christian god is the promise of the desired human coincidence with the divine, with the eternal, with the unlimited, it is, therefore, a solution to the problem of chronological time, a cut that definitively interrupts the incessant flow of time. Unlike the Greek gods, the Christian god is unambiguous: he saves from the pain that time inflicts, he frees from the weight of time and of life on earth, he takes away the sins of the world. His kindness and mercy are infinite, unmistakable and all-powerful. But the victim of acedia feels excluded from divine grace: his experience is that of a profound emptiness, his life is filled with the painful absence of God. Acedia is the suffering because for this absence, which empties of meaning the contemplative life itself. And the numbness in which the melancholy falls is associated with idleness and with the sin of laziness, with an inactivity understood as a sterile dispersion of self, as an unproductive and undue waste of time. Melancholy then becomes a distancing or a withdrawal from God and his saving love and therefore the loss of the soul. The acedia is the incapacity for God's love, a laziness of heart, inexplicable attachment to life in worldly and earthly time. To the melancholic is not given the experience of paradise, he is the lost or the disgraced one to whom is barred from communion with God, the experience of fullness, of the end of the separation of human and divine, the Gaudium of Thomas Aquinas, which is the supreme joy of an eternal suspension of time. His existence is an endless hell, an endless repetition of identical moments, an uninterrupted prolongation of the same nothing. God's empty time is a stagnated and homogenous time, a continuous with no exits, no openings, without hope in a different tomorrow. Acedia is the possible response to this nothingness in the form of idle and powerless contemplation of the world, which merely replicates the absence of grace. It becomes then an evil, and even the supreme evil — the mortal sin of laziness, mother of all vices, which makes the melancholy useless, legitimizing its grief and the abandonment of God.
6.
The medieval curse of the melancholic will, however, know a setback in the Renaissance, with the reappearance of Kronos in his neolatin and neoplatonic version, which is also a reformulation of the physiological and Aristotelian interpretation of melancholy. The melancholy god then receives the name of the planet Saturn, under the sign of which the exhibition of Hélder Folgado is explicitly placed, and which was already the Roman name given to the god kronos, remaining in the Roman version, the association of this fallen god, dethroned and expelled by his son, with a prosperous time, a Golden Age of humankind. Saturn is, like Kronos, a disgraced god, downcast, grieving, a fallen god, drawn down, to the bottom, to the soil, and simultaneously, by virtue of the same attraction, the god who knows the mysteries of matter, its powers of transmutation and regeneration, the cyclical metamorphoses of life and death, the patron god of agriculture. With the figure of Saturn comes back, the melancholy's characteristic ambiguity, its oscillation between the greatest goods and the biggest evils, which reflects, as Panofsky taught, the renaissance and humanist understanding of time and the divine, anticipating also the modern comprehension of its possible irremediable separation. The Renaissance melancholics will be called sons of Saturn by reference to the planet with the same name and its specific characteristics, and which Marsilio Ficino saw manifested in the melancholic disposition and his polarity. Saturn is, on the one hand, the human-friendly planet, vulnerable to the force of gravity and attracted by the Earth and its cyclical and intimate temporal movements, such as the cycle of the seasons or that of the relations between the elements. On the other hand, and at the same time, being the star furthest from the Sun (known at that time the seventh in the planetary system), Saturn was considered the coldest, most isolated, darkest planet, and also the one with the slowest orbit. Saturn is therefore the name of a boundary star, exposed in equal measure both to the attraction of the Earth, home of men, and to the cosmic infinity that it borders. This polarity or ambiguity was not without influence on men, particularly on the melancholics, who were also equally and simultaneously attracted by everything earthly, mundane, temporary, material and mortal, and by the inhuman vastness, outside of earthly time and space, of the celestial dimension. In his Renaissance version, therefore, the melancholic lives again suspended between proximity and distance from earthly existence, and he tends, like the planet that tutors him, towards the secrets of nature and the physical life of the elements, towards the vitality of organic matter, which is always transitory or metamorphic, while his disposition inclines him in the opposite direction, towards a contemplative retreat from the world and earthly transitions, towards a cosmic or total perspective on things of which the world and life on Earth are only a small part. Not being, as the medieval acedia was not, without danger, in this Renaissance tradition, melancholy ceases to be simply condemned, being recognised once again as a value, the possibility of a good. Although dark and somehow strange, distanced from or unconnected to the world around it, given to a recollection that keeps it away from worldly activities and to a numbness that might touch pathology, the melancholic tendency towards contemplation and asceticism, towards the consideration of what is distant and sidereal, dignifies him just as much as the discoveries — technical, artistic and scientific — of his study and interest in elementary combinations and metamorphoses. He combines, therefore, in himself, in his ambiguous disposition, in his behaviour, even in the bodily attitude with which is most often represented, the terrestrial or earthly element, which also constitutes him, and the influence of sky and the stars most distant from Earth. Melancholy thus comes to designate this polarity between the closest and the most distant, this tension in which a tendency towards concentration and self-concentration, that is to say, an inclination towards its own gravity centre, coexists with the fixation on an always perceived absence which dispensed attention to all that is strange. Faithful to the Earth to which he belongs, and to whose phenomena he devotes meticulous, obsessive, passionate attention, the melancholic is then willing to penetrate the heart of things through a concentration in himself, in his own heart. The weight, the seriousness or the melancholic gravity are thus as it were endowed with the wings of contemplation of the mysteries of the universe, and from malign, cursed or sinful the melancholy it becomes winged, inspired or, as Ficino says, generosa.
7.
O anjo de Dürer personifica exemplarmente a ambiguidade da disposição melancólica.
Sentado à beira-mar, sozinho, abatido, ensimesmado, o corpo da figura alada parece
representar — pela sua postura, pelas suas dimensões, pela sua localização costeira ou
liminar — o peso do tempo. Ao mesmo tempo, contudo, o peso que abateu este anjo (caído?)
parece ao mesmo tempo libertá-lo para aquilo a que em português se pode dizer ponderar.
O melancólico de Dürer pondera, preenchido pelo tempo e pelo peso do tempo, tomado de
gravitas.
O anjo está rodeado de instrumentos de cálculo ou medição do tempo e do espaço. Mas a
gravura torna ainda manifesta uma terceira dimensão, que excede o espaço e o tempo
calculáveis pelo compasso, pela régua, pelo esquadro, pela ampulheta, o sino ou o
relógio de sol, uma dimensão de duração e extensão incalculáveis, que excedem todos os
limites conhecidos e humanamente mensuráveis. O tempo surge aqui na sua dimensão
incomensurável, quer dizer, irredutível à ordem da grandeza terrena e, por isso mesmo,
sentida como ameaçadora. A ameaça é sugerida pelas indicações de duas catástrofes
iminentes, a colisão de um cometa com o planeta Terra e aquilo a que hoje chamaríamos um
tsunami, a subida das águas que se aproximam da soleira da casa onde o melancólico se
detém (pois ele está fora da casa, está à porta, como se não coubesse, como se já não
pudesse saber o que é sentir-se em casa, como um sem abrigo acompanhado da sua tralha e
do seu cão). A obra de Dürer assinala que o tempo terreno ou mundano, que é o tempo
humano, convive com um tempo cósmico, quer dizer, com um tempo que escapa às tentativas
humanas de o apreender. Diante dessa dimensão incalculável ou sublime, como se dirá um
pouco mais tarde, o humano descobre que a sua existência é irrelevante do ponto de vista
de uma ordem cósmica que a ultrapassa incomensuravelmente, e que faz parecer
absurdamente insignificante, destituída de qualquer valor ou importância a própria
existência da humanidade. Perante esta dimensão indiferente à vida na Terra, todo o
saber e engenho humanos — as descobertas da física, da geometria, da astronomia, as
invenções artísticas ou os avanços da medicina, a arquitectura, a matemática, a
perspectiva —, tudo isso parece vão ou inútil, tão inútil como os pregos, a plaina ou o
serrote que jazem aos pés do melancólico, impotentes contra a força de um dilúvio ou de
um maremoto, da devastação latente que parece ameaçar continuamente o mundo.
Mas a ser assim, quer dizer, se as artes e as ciências não podem dar conta, não podem
dar uma medida a esta dimensão que excede os limites do humano, a ser assim isso
significa algo que Panofsky não parece ter admitido, e que é, porém, digno de
consideração. Significa que talvez a arte e a ciência não sejam, não possam ser, um
remédio, mas antes a origem ou a causa da melancolia, da paralisia, da impotência de que
o anjo parece estar tomado. Talvez os objectos e instrumentos que jazem inúteis e
espalhados aos pés do melancólico não sinalizem o saber e o poder humanos, o seu engenho
e arte, mas a sua impotência e fragilidade face a uma dimensão com a qual ele não
consegue, no entanto, deixar de se medir. Uma dimensão que se faz sentir, aguda e
paradoxalmente, pela sua ausência na Terra, e que o assombra, enchendo-o, como ao monge
tomado pela acédia ou a Hércules em fúria, de tristeza e de desejo.
8.
O melancólico de Dürer está certamente pesaroso e abatido. Mas esse abatimento, esse peso que o oprime ou deprime convive com um tender na direcção oposta, com o olhar dirigido, atraído ou fixo na distância, perdido num horizonte irremediavelmente inacessível. Esta tensão torna impossível decidir se está concentrado ou distraído, ensimesmado ou alheado, tanto as duas possibilidades parecem ali confundidas. Podemos, no entanto, admitir que o seu recolhimento corresponde, na verdade, a uma abertura, e que o anjo personifica uma exposição, sem reservas, uma coincidência com o coração do tempo e com a sua contradição: ele é a imagem de um pesar ou de um apego ao que parece ter já passado, já acabado, desaparecido, e, ao mesmo tempo, da expectativa de uma iminência, do que está para vir, do que está a chegar, ainda ausente, mas já esperado, já pressentido. Toda a gravura é enigmaticamente habitada por uma ausência, e a atmosfera é maximamente ambígua, evocando a retirada ou o fim de uma actividade que cessou. Esse fim destitui de funcionalidade, de razão de ser, todas as figuras, animadas ou inanimadas, que parecem agora abandonadas por ali, como vestígios ou restos de algo que já passou, que já não é, e cuja presença e privação de sentido, de função e até de um lugar próprio sinalizam o que ainda não é mas já se faz sentir, a transição para um tempo ainda desconhecido, ainda sem figura, mas de algum modo já presente. As formas jacentes teimam em apresentar-se, em persistir por ali, em existir numa vida a que já não pertencem, pedindo talvez atenção, algum tipo de cuidado. Já não servindo, aparentemente, para nada, elas não desapareceram e jazem, desarrumadas, ao acaso, sem propósito nem abrigo certo, como um morto à espera da sepultura. Tão desadequadas ao mundo e ao tempo onde repousam como ao futuro sombrio que esse mundo e esse tempo parecem anunciar, não se pode, porém, dizer que elas sejam dispensáveis, pois a sua presença, a posição algo vulnerável, a definição da sua forma singular pontuam a cena de um modo que é tudo menos neutro. Caídas, desarrumadas, abertas, suspensas entre ser e não ser, aparecer e desaparecer, elas sobrevivem, ainda assim, estão, num certo sentido, ainda vivas, e são retratadas com o que podemos, apesar de tudo, chamar uma existência, que perdura como um vestígio, como o resto de algo que foi, e que sinaliza ou anuncia o destino de tudo o que irá ser. A atmosfera é a do apego, da afeição que habita também a Melancolia de Dürer, onde o anjo alheado ou distraído mantém, contudo, junto de si aquilo que aparentemente já não lhe serve. Se a sua postura sugere indiferença ou distracção, ela não é contudo hostil ao que o rodeia, podendo mesmo dizer-se que a figura alada está ali quase como uma guardiã daquelas formas, digamos assim, sem eira nem beira, que ela parece atrair ou até, de algum modo, proteger. Ou então, podemos considerar que são elas quem protege o melancólico na sua espera, na sua entrega ao intervalo vazio entre o que passou e o que vai chegar, na sua exposição a uma ausência, à presença de uma ausência que não sabemos se será benigna ou catastrófica.
9.
A espera do melancólico é sem garantias — porque o tempo não vai parar.
Na modernidade ocidental, essa ausência fez-se, e faz-se ainda, sentir como a retirada
ou a morte de Deus. A morte de Deus corresponde ao fim da crença num tempo não terreno
ou não mundano, num tempo para além do tempo da vida na Terra, onde a continuidade
cronológica fosse definitivamente suprimida, onde tudo permanecesse ou perdurasse, a
salvo do desaparecimento sempre iminente. Deus remediou, durante séculos, a nossa
melancolia, garantindo a eternidade, garantindo o Céu, e recusando valor à existência
neste mundo transitório, passageiro. Mas a melancolia resistiu, e resiste ainda, para o
melhor e para o pior, às tentativas de cura: fomos e somos melancólicos, sofremos e
sofreremos com o imparável movimento do tempo. A ausência de Deus põe o tempo e o
coração do tempo a nu, expondo-nos, indefesos, tanto aos seus efeitos malignos, à
depressão, à ansiedade, à angústia com a morte, como à possibilidade, sempre incerta,
das suas benesses.
O homem está só na Terra — só com o seu saber e com a sua ignorância, só com os seus
mortos, só com tudo aquilo que ama. Não pode vencer o tempo, nem a morte, mas pode
cuidar das formas que o tempo gera e deforma, amar infinitamente a sua finitude e
entregar-se à sua contradição, à sua pulsação, a essa tensão entre passar e parar que
define a vida. O tempo é imparável, mas a sua passagem admite descontinuidades,
instantes que pontuam a linha contínua e lhe dão um ritmo, uma configuração,
singularizando-a e distinguindo-a da uniformidade indiferenciada e violenta, da
silenciosa voragem de um tempo que apenas se repete, sempre idêntico, sem novidade, um
tempo que devora o tempo.
Não podemos parar o tempo, mas podemos — no tempo — acolher e cuidar das nunca
impossíveis, mas jamais garantidas, inversões do seu curso. No tempo — quer dizer, nesta
vida, que é tempo, um tempo ganho apenas na medida em que é gasto, perdido ou vivido,
cheio de peso e de graça, feito de dor e de alegria.
7.
Dürer's angel embodies the ambiguity of the melancholic mood. Sitting by the sea, alone,
downcast, introverted, the body of the winged figure seems to represent — by his
posture, his dimensions, by his coastal or liminal location — the weight of time. At the
same time, however, the weight that brought down this (fallen?) angel seems to free him
for what in Portuguese can be said ponderar (to consider). Dürer's melancholic
considers, filled with time and with the weight of time, taken from gravitas.
The angel
is surrounded by instruments of calculation or measurement of time and space. But the
engraving manifests a third dimension, which exceeds the space and the time calculable
by the compass, by the ruler, by the square, by the hourglass, the bell or the sundial,
a dimension of incalculable duration and extension, which exceed all known and humanly
measurable limits. Time appears here in its immeasurable dimension, that is to say,
irreducible to the order of earthly greatness and therefore felt as threatening. The
threat is suggested by the indications of two imminent catastrophes, the collision of a
comet with planet Earth and what today we would call a tsunami, the rise of the waters
approaching the house’s threshold where the melancholic stands (because he is outside
the house, he is at the door, as if he could not fit, as if he could no longer know what
it is to feel at home, like a homeless surrounded by his junk and his dog). Dürer's work
points out that earthly or worldly time, which is human time, coexists with a cosmic
time, that is to say, with a time that escapes human attempts to seize it. Faced with
this incalculable or sublime dimension, as will be said a little later, man discovers
that his existence is irrelevant from the point of view of a cosmic order that surpasses
it immeasurably, and makes the very existence of humanity seem absurdly insignificant,
devoid of any value or importance. Faced with this indifferent dimension to life on
Earth, all human knowledge and ingenuity — the discoveries of physics, geometry,
astronomy, artistic inventions or advances in medicine, architecture, mathematics,
perspective — all seem vain or useless, as useless as the nails, the planer or the saw
that lies at the feet of the melancholic, powerless against the force of a flood or a
tidal wave, of the latent devastation that seems to continually threaten the world.
But if this is the case, that is to say, if arts and sciences cannot handle it, they
cannot give a measure to this dimension which goes beyond the limits of the human being;
if this is the case, it means something which Panofsky does not seem to have admitted,
and which is nevertheless worthy of consideration. It means that perhaps art and science
are not, cannot be, a remedy, but rather the origin or cause of the melancholy, of
paralysis, of the powerlessness from which the angel seems to be taken. Perhaps the
objects and instruments that lie useless and scattered at the feet of the melancholic do
not signal human knowledge and power, their ingenuity and art, but their impotence and
fragility in the face of a dimension with which he cannot, however, fail to measure
himself. A dimension which is felt, acutely and paradoxically, by his absence on Earth,
and which haunts him, filling him, like the monk taken by acedia or Hercules in anger,
with sadness and desire.
8.
Dürer's melancholic is certainly sorrowful and downcast. But this grief, this weight that oppresses or depresses him, coexists with a leaning in the opposite direction, with the gaze directed, attracted or fixed in distance, lost in an irremediably and inaccessible horizon. This tension makes it impossible to decide whether he is concentrated or distracted, introverted or alienated, so both possibilities seem confused there. We can, however, admit that his recollection corresponds, in fact, to an opening, and that the angel personifies an exhibition, without reservation, a coincidence with the heart of time and with its contradiction: he is the image of a sorrow or of an attachment to what seems to have already passed, already finished, disappeared, and, at the same time, of the expectation of an imminence, of what is to come, of what is coming, still absent, but already expected, already sensed. All engraving is enigmatically inhabited by an absence, and the atmosphere is highly ambiguous, evoking the withdrawal or the end of an activity that has ceased. This aim deprives of functionality, of a reason for being, all figures, animate or inanimate, which now seem abandoned there, as traces or remains of something that has already gone, that is no longer, and whose presence and deprivation of meaning, of function and even of a place of one's own, signal what is not yet but is already felt, the transition to a time that is still unknown, still without a figure, but somehow already present. The forms recumbent persists in presenting themselves, in persisting there, in existing in a life to which they no longer belong, perhaps asking for attention, some kind of care. They no longer serve any purpose, they have not disappeared and lie, untidy, randomly, without any certain purpose or shelter, like a dead man waiting for his grave. As inadequate to the world and to the time in which they rest as to the dark future that this world and this time seem to announce, it cannot be said, however, that they are dispensable, for their presence, as their somewhat vulnerable position, the definition of their singular form punctuates the scene in a way that is anything but neutral. Fallen, untidy, opened, suspended between being and not being, to appear and disappear, they survive, yet they are, in a certain sense, still alive, and are portrayed with what we can, in spite of everything, call an existence, which endures as a trace, like the remainder of something that was, and which signals or announces the destiny of all that will be. The atmosphere is that of attachment, of affection which also inhabits Dürer's Melancholia, where the angel who is alienated or distracted keeps, however, close to him that which no longer serves him apparently. If his posture suggests indifference or distraction, it is not, however, hostile to his surroundings, and it can even be said that the winged figure is there almost as a guardian of those forms, let us say, with nothing, which seems to attract or even in some way protect. Or, we can consider that it is they who protect the melancholic in his waiting, in his surrender to the empty interval between what has passed and what will arrive, in his exposure to an absence, to the presence of an absence that we do not know if it will be benign or catastrophic.
9.
The waiting is for the melancholic is without guarantees - because time will not stop.
In Western modernity, this absence has been, and still is, felt as the withdrawal or the
God's death. God's death corresponds to the end of belief in a non-earthly or
non-worldly time, a time beyond the time of life on Earth, where chronological
continuity would be definitively suppressed, where everything would remain or endure,
safe from the always imminent disappearance. For centuries God has repaired our
melancholy, guaranteeing eternity, guaranteeing Heaven, and denying value to existence
in this transitory, passing world. But melancholy has resisted, and still resists, for
better or worse, to the attempts of healing: we were and are melancholic, we suffer and
will suffer with the unstoppable movement of time. God's absence makes time and the
heart of time exposed, defenceless, both to its evil effects, to depression, to anxiety,
to anguish with death, and to the ever-uncertain possibility of its blessings.
Man is alone on Earth — alone with his knowledge and his ignorance, alone with his dead,
alone with all that he loves. He cannot overcome time or death, but he can take care of
the forms that time generates and deforms, endlessly love its finitude and give himself
up to its contradiction, to its pulsation, to that tension between passing and ceasing
that defines life. Time is unstoppable, but its passage admits discontinuities, moments
that punctuate the continuous line and give it a rhythm, a configuration, singularising
it and distinguishing it from the undifferentiated and violent uniformity, from the
silent voracity of a time that only repeats itself, always identical, without novelty, a
time that devours time.
We cannot stop time, but we can — in time — accept and take care of the never
impossible, but never guaranteed, inversions of its course. In time — that is to say, in
this life, which is time, a time won only to the extent that it is spent, lost or lived,
full of weight and grace, made of pain and joy.
MUDAS.MUSEU
II
Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.
Bernardo Soares
1.
A melancolia é sem data, mas não sem atributos.
A presente exposição dá disso conta: a melancolia tem uma cor, uma textura, uma temperatura,
uma posição ou uma géstica, um movimento próprio, e também uma dada iluminação, uma
localização, uma hora precisa, uma estação do ano, um planeta próprio. Hélder Folgado
articulou aqui, em três tempos, a perspectiva mítica e a perspectiva física e alquímica
sobre a melancolia, explorando as suas configurações materiais e a indissociabilidade destas
últimas com aquilo a que podemos, talvez, ainda chamar o espiritual. Inspirando-se
explicitamente na interpretação renascentista da melancolia, o artista propõe aos visitantes
um percurso ascendente com três paragens — a galeria do Museu-Casa das Mudas, a galeria da
Quinta dos Prazeres e o chamado Sítio do Ponto —, convidando-o a percorrer parte do
território insular e iniciando-o nos seus segredos.
Todas as peças expostas se intitulam Melancolia, e para as conhecer o espectador é levado a
alternar entre a posição erecta, frontal e estática, exigida pelas peças de parede, e uma
inclinação do seu corpo em movimento, exigida pela contemplação das peças pousadas no chão.
Tal como esta alternância, também a polaridade entre alto e baixo, quietude e movimento,
órbita e linha recta, verticalidade e horizontalidade sugere imediatamente o mote da
exposição e a polaridade que caracteriza a melancolia. A experiência melancólica do tempo (e
do espaço) é exaustivamente trabalhada pelo artista na sua dupla modalidade, explorando-se
tanto a continuidade como o corte ou a pausa, tanto a demora como o instante ou o acaso,
duplicidade a que a escolha do material dominante na exposição — a cera — se presta de modo
exemplar.
A primeira etapa da exposição situa-se, significativa e melancolicamente, à beira-mar, no
assombroso local-limite que este Museu ocupa. Ao entrar na galeria, o visitante depara-se
com duas peças pousadas no chão, um bloco de forma cúbica e um recipiente circular contendo
água, enquanto sete esculturas ocupam as duas longas paredes paralelas se adivinham em duas
cavidades simétricas, aparentemente vazias. No caso das peças aqui expostas, a cera foi
recolhida pelo artista num local de culto chamado Terreiro da Luta, situado num miradouro da
freguesia do Monte. Nesse ponto elevado da ilha encontra-se um monumento a Nossa Senhora,
erguido na sequência de um bombardeamento à cidade do Funchal, e rodeado de ex-votos
derretidos, vestígios de pedidos e promessas que jazem por ali ao abandono, inertes,
deformadas, imprestáveis. Hélder Folgado recolheu a cera dessas velas já frias e desfeitas
para dar uma nova forma aos despojos de um sentido extinto ou agora ausente, e assim tentar
restituir vida àquela matéria agora morta. A concepção das peças foi, portanto, entendida
como um melancólico processo de metamorfose alquímica, o processo de transmutação de cinzas
em fogo, de lixo em ouro, iniciado por uma descida em direcção ao mar e pela deslocação e
deposição dos despojos do culto na galeria das Mudas. É ali que tem lugar o primeiro momento
transformador, o momento de um luto infinitamente renovado, no qual o gesto de dar sepultura
às ruínas de um sentido já desaparecido se compreende a si mesmo como um gesto de renovação
e passagem no interior de um ciclo de vida e de morte.
O enorme cubo que abre a exposição sofreu a mesma trasladação, depois de encontrado no mesmo
local de culto. Vestígio um tanto enigmático do sentimento e da prática humana do luto pelos
mortos — a prática que lhes concede uma sobrevivência na terra —, o cubo articula, na
complexa amálgama que o compõe, a pureza e a abstracção da forma geométrica com a densa
materialidade das camadas de cera depositadas ao longo de anos, uma acumulação de camadas de
tempo e de sentido onde se misturam terra, folhas, cinzas, ferrugem e outros restos
orgânicos. O cubo de cera é um “depósito do imaterial”, um testemunho da transição entre
estados que habita todas as peças expostas aqui. É também esse o caso da escultura circular
metálica — outro depósito, mas agora de água —, em redor do qual orbita uma
semicircunferência. A água provém do Atlântico, é uma água viva, orgânica, mas que é ali
privada de movimento, retida num círculo férreo em cujo fundo jaz uma fina camada de
partículas de cera cinzenta, formando um desenho quase cosmológico. A água do mar age sobre
a cera formando pequenas bolhas, sobre as quais se formam depois bolhas de ar que
cristalizam, tornando-se brilhantes. Deste modo, as cinzas mortas, frias, afogadas,
convertem-se, através da acção do elemento aquoso e vivo e da intervenção do artista, numa
imagem da cintilação das estrelas na noite. Ao espectador que se abeira e se inclina, como o
melancólico, para a água do mar e para o centro da peça é dado contemplar, como se por
magia, o reflexo da sua imagem na superfície lisa e líquida, um espelho do céu e o fundo
mar.
Transição, passagem, polaridade entre opostos são os elementos que tecem a melancolia,
tingindo o mundo de ambiguidade. A sua formulação porventura mais aguda foi aqui
dissimulada, mantida secreta para o olhar inadvertido: as cavidades das duas chaminés, dois
espaços contíguos e vazios, como janelas tapadas lado a lado, escondem símbolos da vida e da
morte, do ser e do não ser. Na da esquerda, uma hamletiana caveira de cera negra, cega e
silenciosa como uma sombra, fita, sem olhos, uma nesga do céu distante e exterior; na da
direita, seis sementes esperam o calor do fogo e da vida, a mudança térmica que operará a
metamorfose da germinação. O fogo, tal como tempo, também rouba com uma mão o que dá com a
outra, transformando a matéria fria e inerte em movimento e luz, e concedendo a mesma vida
que as chamas devoram, para arder.
A mesma ambiguidade apresenta-se nas sete esculturas de parede, na exploração das qualidades
pictóricas e escultóricas da cera e nas incisões nela feitas, que reflectem os atributos com
que a tradição caracterizou a disposição melancólica. Hélder Folgado joga também com o negro
baço e ceroso que reluz quando a luz lhe toca, mas que é sempre opaco, espesso como a bílis
negra de que falou Aristóteles, um negro lustroso, mas rugoso, contido ou retido nos limites
de uma moldura rectangular, quase monolítica ou mesmo tumular. É o caso de Melancolia I,
onde uma prega espessa de cera escorre e forma como que uma dobra curva na parte inferior do
rectângulo anguloso, desfazendo a geometria e tendendo, ou pendendo, para baixo, para o
chão, sendo que a mesma dobra evoca um comovente esgar humano, que tanto pode ser um sorriso
como um lábio fremendo à beira do pranto. Noutro caso (Melancolia II), um fio negro pende
tristemente, separando as duas metades da peça rectangular como um longo pavio que aguarda
com paciência o instante da ignição, o fiat lux que inverterá o sugerido sentido descendente
ou declinante, transformando o fim num novo início — podendo, no entanto, também acontecer
que o pavio seja, afinal, um rastilho, convertendo-se a mesma peça numa barra de dinamite e
a figura do anseio criador no seu pólo oposto, em melancólica fúria destruidora.
É ainda possível reconhecer, nas incisões, tendencialmente longitudinais, das esculturas, os
sinais da experiência da melancolia (a experiência da cisão, a ferida, a separação, a
queda...), não faltando nesta constelação disposicional a referência ao Sol negro da
melancolia (Melancolia III), cunhado ou impresso na cera que se retrai ou afunda, oprimida,
em si mesma, mas que, a uma dada incidência da luz, irradia o seu negrume de chumbo deixando
ver pequenos relevos no interior da circunferência, e transmutando a sensação de
interioridade, a psicologia, numa geografia ou num pequeno mapa-mundo contido no círculo
escuro, onde pequenas ilhas parecem irromper de um mar negro ou meteoritos flutuar numa
atmosfera de cinzas. Melancolia IV e VI, por seu lado, apresentam cortes, e versões opostas
do vazio. Melancolia IV é uma peça lustrosa, fria, coberta por um contínuo suave de finas
linhas horizontais, quase gráficas, um contínuo fendido ou interrompido longitudinalmente
por uma linha negra, quase recta, que, bem vistas as coisas, é uma quebra, quase uma falha
geológica, uma separação das partes, uma fragmentação do todo, um trauma ou um luto que não
será superado. Pelo contrário, emMelancolia VI, o corte sugere uma ferida que abriu a
partir do centro, uma fenda que deixa entrever um interior áspero, que não vai cessar de se
abrir e ameaça engolir tudo em volta, como uma espécie de reverso da Origem do mundo de
Courbet. Encontramos a mesma impressão de perda e desaparecimento iminente em Melancolia V,
onde a moldura delimita o que parece ser uma parede rochosa que se apresenta e se esbate, em
direcção descendente, até a diferença entre forma e fundo desaparecer completamente e tudo
se homogeneizar numa superfície lisa, num contínuo nada, ininterrupto e esvaziado de forma.
Tal como as linhas horizontais de Melancolia IV, esta parede rochosa compõe um padrão, um
movimento repetitivo de incisões, cuja auto-mimese acaba por sugerir o contrário do
movimento, uma cristalização da pulsação ou do ritmo, que já não sabemos se parte da
superfície para o interior da peça ou se, pelo contrário, vem de dentro dela para o seu
exterior, acabando ambas as orientações por se fundir, e maravilhosamente nos confundir. Em
Melancolia VII deparamos, não menos melancolicamente, com a horizontalidade, um horizonte
ambíguo, desdobrado em linhas paralelas. Na parte superior, a fria e negra uniformidade de
um céu lustroso é mitigada por uma chuva ou um choro suave, que ‘pinga’ (para cima ou para
baixo?) e forma uma barra até outra linha que é o limite de uma nova barra, agora baça e
mais geométrica. Na sua extremidade inferior pequenas bolhas rugosas formam uma espuma fina,
que escorre para a parte inferior do quadro, cuja textura acetinada e opaca é pontuada por
pequeníssimas ondulações dispersas até à orla inferior, que evoca, novamente, uma linha.
O negro, triste, pesado, lutuoso é explorado aqui nas suas diversas variações, mergulhando o
espectador numa atmosfera opressiva, plúmbea, morosa e depressiva. Estamos na extremidade
inferior do percurso proposto por Hélder Folgado, e fomos já iniciados nos mistérios da
melancolia, na experiência melancólica do tempo, da vida e da morte. Saturno exibe aqui o
seu lado nocturno e soturno, uma temporalidade concêntrica, circular e repetitiva, a pressão
de um contínuo sem novidade nem piedade, que reproduz o mesmo vazio interior e exterior,
tornando mais presente a ausência.
II
We are two abysses — a well staring at the sky.
Bernardo Soares
1.
Melancholy is undated, but not without attributes.
The present exhibition shows this: melancholy has a colour, a texture, a temperature, a
position, a movement of its own, and also a certain illumination, a location, a precise
time, a season, a planet of its own. Hélder Folgado has articulated here, in three
times, the mythical perspective and the physical and alchemical perspective of
melancholy, exploring its material configurations and the indissociability of the last
with what we can perhaps still call the spiritual. Taking explicit inspiration from the
Renaissance interpretation of melancholy, the artist proposes to the visitors an
ascending journey with three stops — the gallery of the Museu-Casa das Mudas, the
gallery of Quinta dos Prazeres and the so-called Sítio do Ponto —, inviting them to
travel through part of the island territory and initiating them in its secrets.
All the pieces on display are entitledMelancolia, and to get to know them the viewer is
taken to alternate between the standing position, frontal and static, required by the
wall pieces, and an inclination of his body in movement, required for the contemplation
of the pieces on the ground. Like this alternation, the polarity between high and low,
quietness and movement, orbit and straight line, verticality and horizontality
immediately suggest the motto of the exhibition and the polarity that characterises
melancholy. The melancholic experience of time (and space) is exhaustively worked on by
the artist in his double modality, exploring both continuity as a cut or a pause, both
the delay as the instant or chance, duplicity to which the choice of the dominant
material in the exhibition - wax - is exemplary.
The first part of the exhibition is situated, significantly and melancholically, by the
seaside, in the astonishing boundary that this Museum occupies. When entering the
gallery, the visitor comes across two pieces placed on the floor, a cubic-shaped block
and a circular container with water, while seven sculptures occupy the two long parallel
walls and guess in two symmetrical, apparently empty cavities. In the case of the works
exhibited here, the wax was collected by the artist in a place of worship called
Terreiro da Luta, situated in a viewpoint of Monte's parish. At this high point of the
island there is a monument to Our Lady, erected following a bombing of Funchal, and
surrounded by former melted vows, traces of requests and promises lying there abandoned,
inert, deformed, useless. Hélder Folgado collected the wax from those already cold and
broken candles to give a new form to the spoils of an extinct or now absent sense, and
in this way to try to restore life to that now dead matter. The conception of the pieces
was therefore understood as a melancholic process of alchemical metamorphosis, the
process of transmutation of ashes into fire, of rubbish into gold, initiated by a
descent towards the sea and by the displacement and deposition of the spoils of the cult
in the Mudas' gallery. It is there that the first transforming moment takes place, the
moment of an infinitely renewed mourning, in which the gesture of giving burial to the
ruins of a sense that has already disappeared perceives itself as a gesture of renewal
and passage within a cycle of life and death.
The large cube that opens the exhibition suffered the same transfer after being found in
the same place of worship. A rather enigmatic vestige of the human feeling and practice
of mourning for the dead — the practice that grants them a survival on earth — the cube
articulates, in the complex amalgam that composes it, the purity and abstraction of the
geometric shape with the dense materiality of the layers of wax deposited over the
years, an accumulation of layers of time and meaning, where soil, leaves, ashes, rust
and other organic remains are mixed. The wax cube is a "deposit of the immaterial", a
testimony of the transition between states that inhabits all the pieces displayed here.
This is also the case of the circular metallic sculpture — another deposit, but now of
water —, around which a semi circumference orbits. The water comes from the Atlantic, it
is a living, organic water, but it is deprived of movement there, retained in a iron
circle on which a thin layer of grey wax particles lie, forming an almost cosmological
design. The sea water acts on the wax forming small bubbles, on which air bubbles then
crystallise, becoming bright. In this way, the dead, cold, drowned ashes become, through
the action of the aqueous and living element and the artist's intervention, into an
image of the star's scintillation in the night. To the viewer, who bends and leans, like
the melancholic, towards the sea water and to the centre of the piece, can contemplate,
as if by magic, the reflection of his image in the smooth and liquid surface, a mirror
of the sky and the sea bottom.
Transition, passage, polarity between opposites are the elements that weave melancholy,
dyeing the world of ambiguity. Their formulation has perhaps been more acute was here
dissimulated, kept secret to the inadvertent look: the cavities of the two chimneys, two
contiguous and empty spaces, like windows covered side by side, hide symbols of life and
death, of being and not being. On the left, a hamlet skull of black wax, blind and
silent as a shadow, gaze, without eyes, a silver of the distant and exterior sky; on the
right, six seeds are waiting for the heat of fire and life, the thermal change that will
operate the metamorphosis of germination. Fire, like time, also steals with one hand
what it gives with the other, transforming cold and inert matter into movement and
light, and granting the same life that the flames devour, to burn.
The same ambiguity is shown in the seven wall sculptures, in the exploration of the
pictorial and sculptural qualities of the wax and in the incisions made in it, which
reflect the attributes with which tradition has characterised the melancholic
disposition. Hélder Folgado also plays with the dull and waxy black that shines when the
light touches it, but that is always opaque, as thick as the black bile that Aristotle
spoke of, a shiny but rough black, contained or retained within a rectangular, almost
monolithic or even tumular frame. This is the case ofMelancholia I, where a thick fold
of wax drips and forms like a curved fold at the bottom of the angular rectangle,
undoing the geometry and tending, or leaning, down to the ground, and the same fold
evokes a touching human grin, that can be as much as a smile as a lip vibration almost
crying. In another case (Melancolia II), a black thread hangs sadly, separating the two
halves of the rectangular piece like a long wick that patiently awaits the instant of
ignition, the fiat lux that will reverse the suggested downward or declining direction,
transforming the end into a new beginning — it may also happen, however, that the wick
is, after all, a fuse, turning the same piece into a bar of dynamite and the figure of
the creative longing in its opposite pole, into a melancholic destructive fury.
It is also possible to recognize, in the incisions, mainly longitudinal, of the
sculptures, the signs of the experience of melancholy (the experience of scission, the
wound, the separation, the fall... ), not missing in this dispositional constellation
the reference to the black Sun of melancholy (Melancolia III), stamped or printed on the
wax that retracts or sinks, oppressed, in itself, but that, at a given incidence of
light, radiates its lead blackness letting see small reliefs inside the circumference,
and transmuting the feeling of interiority, the psychology, into a geography or a small
world map contained in the dark circle, where small islands seem to erupt from a black
sea or meteorites floating in an atmosphere of ashes. Melancolia IV and VI, on the other
hand, present cuts, and opposite versions of emptiness. Melancolia IV is a lustrous,
cold piece, covered by a smooth continuum of thin, horizontal, almost graphic lines, a
continuum split or interrupted longitudinally by a black line, almost straight, which,
after all, is a break, almost a geological fault, a separation of the parts, a
fragmentation of the whole, a trauma or a mourning that will not be overcome. On the
contrary, in Melancolia VI, the cut suggests a wound that has opened from the centre, a
crack that lets one glimpse a rough interior, that will not cease to open and threatens
to swallow everything around it, like a kind of reverse of the Origin of the world of
Courbet. We find the same impression of loss and imminent disappearance in Melancolia V,
where the frame delimits what appears to be a rocky wall that presents itself and fades,
in a downward direction, until the difference between form and bottom disappears
completely and everything homogenizes on a smooth surface, in a continuous nothing,
uninterrupted and emptied of shape. Like the horizontal lines of Melancolia IV, this
rocky wall composes a pattern, a repetitive movement of incisions, whose self-mimesis
ends up suggesting the opposite of movement, a crystallization of pulsation or rhythm,
which we no longer know if it starts from the surface towards the interior of the piece
or if, on the contrary, it comes from inside towards its exterior, both orientations
ending up by merging, and wonderfully confusing us. In Melancholia VII we come across,
no less melancholically, with horizontality, an ambiguous horizon, unfolded in parallel
lines. At the top, the cold, black uniformity of a lustrous sky is mitigated by rain or
a soft cry, which "drips" (up or down?) and forms a bar to another line which is the
limit of a new bar, now dull and more geometric. At its lower end, small rough bubbles
form a thin foam, that drops down to the lower part of the frame, whose satiny, opaque
texture is punctuated by very small undulations scattered to the lower edge, which again
evokes a line.
The black, sad, heavy, sorrowful is explored here in its various variations, plunging
the viewer into an oppressive, leaden, slow and depressing atmosphere. We are at the
lower extremity of the path proposed by Hélder Folgado, and we have already been
initiated in the mysteries of melancholy, in the melancholic experience of time, life
and death. Saturn exhibits here its nocturnal and somber side, a concentric temporality,
circular and repetitive, the pressure of a continuous without novelty or piety, which
reproduces the same inner and exterior emptiness, making the absence more present.
GALERIA DOS PRAZERES
2.
À saída, o visitante é convidado a seguir uma instrução do artista inscrita num carimbo,
que terá de activar, pressionando-a e transpondo-a para uma folha branca:
ao anoitecer desloca-te ao ponto. serpenteia-o até ao topo. deita o teu corpo de costas,
no centro. olha em frente.
Antes de chegar ao ponto, porém, terá de percorrer a segunda etapa do percurso iniciático, e passar, por assim dizer, de dentro para fora, da noite para o dia, voltando as costas ao mar e seguindo para o interior da ilha, subindo para a galeria da Quinta dos Prazeres. Passamos da mudez oceânica e monotónica, da lentidão de chumbo, para a actividade dos trabalhos e dos dias, para um ritmo criador e uma relação com a Terra que faz aparecer a vida e não a morte. Trata-se agora de adoptar a perspectiva do cultivo, da lida agrícola que alia ao movimento que vai de fora para dentro, para o fundo — o movimento de cavar, semear, arar — o movimento que vem de dentro para fora, para a luz — que caracteriza o germinar, o brotar, o desabrochar. O culto aqui é o cuidado com cada forma que nasce, e que não cessa de renascer. O tempo não é agora pensado na sua dimensão íntima ou psicológica, mas atmosférica e cosmológica, cujos efeitos na Terra são trabalhados nesta quinta que, segundo nos diz o seu nome, não é a dos trabalhos, mas a dos prazeres. O tempo aqui é o tempo meteorológico, palavra cuja etimologia indica estudo dos corpos e fenómenos celestes que permite a previsão dos seus movimentos e comportamentos, mas que, como bem sabemos, não é infalível, não anula a imprevisibilidade de mudanças repentinas, por vezes catastróficas, outras vezes recebidas como uma bênção dos céus. A meteorologia não é uma ciência exacta, um controlo absoluto do estado tempo, mas uma ciência melancólica que implica uma abertura à instabilidade constitutiva dos fenómenos atmosféricos, à sua resistência ao cálculo e à mensurabilidade matemática. Ela implica, tal como a agricultura, uma atenção aos elementos e às mutações da matéria que descobre na variabilidade, na transitoriedade, na mutabilidade uma fertilidade, uma criatividade, uma vida própria que a segunda etapa desta exposição revela ao visitante, mostrando-lhe a versão solar, pródiga e dourada de Saturno e da melancolia.
Na antecâmara da galeria, o desenho de uma enorme esfera de cor cinza clara sobre um
fundo branco indica a passagem, a transição, das peças expostas nas Mudas para as que
são expostas aqui. Um círculo cujo perímetro excede a folha rectangular sugere uma
dimensão extra-humana, talvez mineral, e descobrimos depois que ele se encontra nas
costas de outro círculo suspenso na sala da exposição propriamente dita, como se fosse o
seu reverso, digamos assim, lunar. Nessa sala, o visitante encontra sete desenhos
suspensos, feitos sobre papel de transferência, um papel muito ligeiro que parece quase
um tecido. São o contraponto, o contrapeso ou o negativo (que é positivo) das sete peças
densas, monolíticas, do Mudas, e são tutelados por uma peça circular erguida na parede
adjacente, que dialoga com um paralelepípedo negro assente no chão da sala, côncavo na
face superior, e onde um longo sulco acolhe uma porção de água. O visitante reconhece
aqui as formas que vira nas Mudas, agora transmutadas para uma disposição oposta e
complementar. Para além da cera, regressa também a já referida forma circular ou
esférica, uma forma astral que tanto evoca o Sol, como uma lua sobre um fundo negro. E
regressam igualmente as linhas rectas e curvas, a inclinação e a horizontalidade já
presente nas Mudas, podendo o visitante identificar, por exemplo, um desenho que lembra
a peça da ‘dobra’ (o primeiro da série Melancolia III), ou outro que responde à peça
que, lá em baixo, repetia a linha do horizonte (Melancolia XII).
A repetição dos mesmos motivos, da mesma matéria e da mesma gramática da melancolia
mostra-se agora a uma outra luz, mostra a sua outra face, apresentando-se aqui uma
variação de cada um dos motivos já trabalhados, mas nas paredes contrárias ou em
posições diferentes. O círculo que jazia no chão com a água do mar deslocou-se para a
parede (Melancolia XX), tendo a estrutura de ferro sido agora preenchida,
significativamente, com cera de abelha, e sendo esta peça — um Sol, talvez uma enorme
moeda de ouro, protectores, pródigos — a única com cor, uma cor orgânica, talvez de mel.
No chão, a peça estreita de cera negra com a forma de um longo paralelepípedo é, também
ela, como que uma metamorfose do círculo das Mudas. Aqui, a água que preenche um sulco
longilíneo, uma suave depressão na superfície superior da peça, é uma porção da chamada
‘água de giro’, quer dizer, de água que o artista trouxe das levadas madeirenses, o
conhecido sistema de regadio da ilha através do qual a água circula e que a distribui,
numa medida calculada para ser justa, de modo a que chegue a certas horas a cada lugar
de cultivo. Trata-se, uma vez mais, de uma água ‘viva’, quer dizer, dotada de movimento,
mas cuja ‘vida’ conjuga, agora, um ciclo natural com uma orientação e um cálculo
humanos. Retida nesta peça de forma algo tumular, a água recorda ao visitante as peças
feridas por cortes ou fendas longitudinais expostas nas Mudas, e aqui a ferida parece
suavizada, sugerindo ao mesmo tempo um pouso ou repouso provisório, no qual se opera a
discreta, quase imperceptível, evaporação do líquido, quem sabe se por acção do Sol
ceroso.
As duas peças contêm em si mesmas uma polaridade íntima, formal e material, a mesma tensão que constitui a disposição melancólica e a sua ambiguidade essencial. Por um lado, elas actualizam as formas geométricas puras e elementares do círculo e da linha recta e a ambiguidade que elas simbolizam, mesmo de um ponto de vista geométrico — a infinitude ou a eternidade do movimento circular, que apenas a orientação concêntrica e o encerramento de um espaço interior à linha curva que se encerra em si mesma permite estabelecer; a finitude da linha recta, com o seu princípio e o seu fim bem definidos, mas abertos a um espaço circundante cujas dimensões são indeterminadas. Deste ponto de vista, o paralelepípedo surge como o pólo oposto do círculo: a sua forma não é circular, de movimento potencialmente infinito e concêntrico, mas a de um corte, que é ao mesmo tempo uma direcção, um canal (uma levada) pelo qual a água avança. Por outro lado, em ambas as obras a dimensão rigorosa e calculável da forma abstracta contrasta com a infinita vulnerabilidade da matéria ao acaso, aos acidentes incalculáveis, como o sulco ou a depressão no paralelepípedo ou as bolhas e manchas geradas pela cera no Sol saturnino, não introduzidas pelo artista, mas sofridas, digamos, natural ou acidentalmente, pela matéria das peças. O acidente, que é uma descontinuidade, um desvio numa dada homogeneidade uniforme, estável e previsível, foi assim integrado nestas peças, revelando a abertura ou a exposição do artista (também ele um melancólico) à incalculabilidade, à imprevisibilidade de que a criação, artística ou natural, é sempre constituída. Mas a integração do acaso nas peças dá igualmente a ver a disposição melancólica da própria matéria, dignificando a sua instabilidade natural e mostrando que essa susceptibilidade, essa vulnerabilidade elementar é sinal, ou sintoma de uma vitalidade, de uma energia íntima. As formas surgidas, sem qualquer intervenção do artista, durante a secagem da cera do círculo solar, são um exemplo desta vitalidade melancólica, podendo nós reconhecer ali, e não sem surpresa, o padrão dos alvéolos dos favos de uma colmeia, como se a matéria se renovasse a si mesma, fazendo, desfazendo e refazendo, ou recordando, a sua forma originária, misteriosamente ressuscitando a sua configuração original, numa repetição de si que é sempre uma metamorfose, uma transformação.
Todos os trabalhos aqui expostos exploram os limites de conceitos opostos —
finito/infinito, curva/recta, contínuo/corte, repetição/diferença, vida/morte... —, e
essa exploração aplica-se aos também ‘desenhos’ suspensos ao longo das duas paredes,
feitos sobre papel embebido em cera preta, com a textura e a cor da bílis negra. Quando
exposto à cera aquecida, o químico do papel dissolve-se e transfere o desenho para outra
folha, como se renascesse, metamorfoseado, depois de sofrer um acontecimento limite, uma
pressão, ou depressão, intolerável. A sobrevivência destas formas, que nas Mudas eram
algo sepulcrais, dependeu assim de uma transição quase sacrificial, à qual resistiram
apenas porque o peso se transformou em leveza e a queda se tornou levitação. Ao longo
das paredes, os desenhos representam fragmentos ou momentos de uma órbita, a órbita de
Saturno, da qual se vislumbra, aqui um anel, ali a proximidade do astro, depois apenas a
sua ausência num negrume uniforme, para voltarmos a aperceber os anéis, ou o círculo
completo. Acompanhando o movimento de Saturno, o espectador circula pela sala na posição
frontal de um contemplador do horizonte, mas fica por decidir se é ele quem orbita em
torno do planeta melancólico, ou se, pelo contrário, é este último quem paira em seu
redor, fazendo sentir a sua presença ora próxima, ora distante, ora aflorando o mundo
com os seus anéis, ora desaparecendo.
Perfazendo, de desenho em desenho, a órbita de Saturno, o visitante percorre a sala até
voltar ao ponto de partida. Mas ao contrário do que acontecia nas Mudas, aqui Hélder
Folgado orienta o visitante pelo Sol, expondo-o ao ouro da sua luz, ao calor que dá a
vida, à irradiação generosa, antes de o fazer prosseguir o caminho ascendente para a
terceira etapa da exposição, o seu ponto final, mas infinitamente passível de renovação.
2.
At the exit, the visitor is invited to follow an instruction from the artist registered
on a stamp, which he will have to activate by pressing it and transposing it to a white
sheet:
at dusk, move to the ponto. wind it all the way to the top. lay your body on your back,
in the centre. look forward.
Before reaching the ponto, however, he will have to go through the second part of the initiatory path, and pass, so to speak, from inside to the outside, from night to the day, turning his back to the sea and going to the interior of the island, going up to Quinta dos Prazeres' gallery. We pass from the oceanic and monotonic muteness, from the slowness of lead, to the activity of the works and days, to a creative rhythm and a relationship with Earth that makes life appear and not death. It is now a question of adopting the perspective of cultivation, of agricultural work that allies the movement that goes from outside to inside, to the bottom — the movement of digging, seeding, plowing — the movement that comes from inside to the outside, to the light — that characterises germination, sprouting, blossoming. The cult here is the care for each form that is born, and never ceases to be reborn. Time is not now thought of in its intimate or psychological dimension, but atmospheric and cosmological, whose effects on Earth are worked on this farm which, as its name tells us, is not that of works, but of pleasures. Time here is the meteorological weather, a word whose etymology indicates the study of celestial bodies and phenomena that allows the prediction of its movements and behaviour, but which, as we well know, is not infallible, it does not nullify the unpredictability of sudden, sometimes catastrophic, changes, sometimes received as a blessing from heaven. Meteorology is not an exact science, an absolute control of the weather's state, but a melancholic science that implies an opening to the constitutive instability of the atmospheric phenomena, to its resistance to calculation and to mathematical measurability. Like agriculture, it implies an attention to the elements and the mutations of matter that discover in variability, in transitory, in mutability a fertility, a creativity, a life of its own that the second part of this exhibition reveals to the visitor, showing him the solar version, prodigal and golden version of Saturn and melancholy.
In the gallery's antechamber, the drawing of a huge light grey sphere on a white
background indicates the passage, the transition, of the pieces displayed in Mudas to
those displayed here. A circle whose perimeter exceeds the rectangular sheet suggests an
extra-human dimension, perhaps mineral, and we then discover that it is on the back of
another circle suspended in the exhibition room itself, as if it were its reverse, so to
speak, lunar. In this room, the visitor finds seven suspended drawings, made on transfer
paper, a very light paper that looks almost like fabric. They are the counterpoint, the
counterweight or the negative (which is positive) of the seven dense, monolithic Mudas’
pieces, and are tutored by a circular piece raised on the adjacent wall, which dialogues
with a black parallelepiped placed on the floor of the room, concave on the upper face,
and where a long furrow welcomes a portion of water. Here the visitor recognises the
shapes he saw in Mudas, now transmuted to an opposite and complementary arrangement.
Besides wax, returns also, the already mentioned circular or spherical form, an astral
form that evokes both the Sun and a moon over a black background. Also returns the
straight and curved lines, the inclination and horizontality, already existing in Mudas,
and the visitor can identify, for example, a drawing that resembles the "fold" of the
piece (the first in the Melancolia III series), or another that corresponds to the piece
that, below, repeated the horizon line (Melancolia XII).
The repetition of the same motifs, of the same matter and of the same melancholy grammar
now shows itself in another light, it shows its other face, here presenting a variation
of each of the motifs already worked on, but on the opposite walls or in different
positions. The circle lying on the floor with sea water has moved to the wall
(Melancolia XX), and the iron structure has now been significantly filled with beeswax,
and this piece — a Sun, perhaps a huge gold coin, protectors, prodigies — being the only
one with colour, an organic colour, perhaps of honey. On the floor, the narrow piece of
black wax in the shape of a long parallelepiped is also like a metamorphosis of Mudas'
circle. Here, the water that fills a long furrow, a gentle depression in the upper
surface of the piece, is a portion of the so called "água de giro", that is, the water
that the artist brought from the Madeiran levadas (water channels), the well-known
irrigation system of the island through which the water circulates and that distributes
it, in a measure calculated, to be fair, so that it arrives at the exact time to each
place of cultivation. Once again, it is a "living" water, that is to say, one that has
movement, but whose "life" now combines a natural cycle with a human orientation and
calculation. Retained in this piece in a somewhat tumultuous form, the water reminds the
visitor of the pieces wounded by cuts or longitudinal cracks exposed in Mudas, and here
the wound seems softened, suggesting at the same time a temporary landing or provisory
rest, in which the discreet, almost imperceptible, evaporation of the liquid is
operated, perhaps by the action of the waxy Sun.
The two pieces contain in themselves an intimate, formal and material polarity, the same
tension that constitutes the melancholic disposition and its essential ambiguity. On the
one hand, they update the pure and elementary geometric forms of the circle and the
straight line and the ambiguity they symbolise, even from a geometric point of view —
the infinity or eternity of circular movement, which only the concentric orientation and
the closing of a interior space to the curved line that encloses in itself, allows to
establish; the finitude of the straight line, with its beginning and its end well
defined, but open to a surrounding space whose dimensions are indeterminate. From this
point of view, the parallelepiped appears as the opposite pole of the circle: its shape
is not circular, with potentially infinite and concentric movement, but that of a cut,
which is at the same time a direction, a channel (uma levada) through which water moves.
On the other hand, in both works the rigorous and calculable dimension of the abstract
form contrasts with the infinite vulnerability of random matter, to the incalculable
accidents, such as the furrow or depression in the parallelepiped or the bubbles and
stains generated by the wax in the saturnine Sun, not introduced by the artist, but
incurred, let's say, naturally or accidentally, by the matter of the pieces. The
accident, which is a discontinuity, a deviation in a given uniform homogeneity, stable
and predictable, was thus integrated in these pieces, revealing the artist's openness or
exposure (he too a melancholic) to the incalculability, the unpredictability that
creation, artistic or natural, is always constituted. But the integration of chance in
the pieces also shows the melancholic disposition of the matter itself, dignifying its
natural instability and showing that this susceptibility, this elemental vulnerability
is a sign, or symptom of vitality, of an intimate energy. The forms that emerged,
without any intervention by the artist, during the drying of the wax of the solar
circle, are an example of this melancholic vitality, and we can recognise there, and not
without surprise, the pattern of a hive honeycombs, as if the matter was renewed itself,
making, undoing and remaking, or remembering, its original form, mysteriously
resuscitating its original configuration, in a repetition of itself that is always a
metamorphosis, a transformation.
All the works presented here explore the limits of opposing concepts - finite/infinite,
curve/rect, continuous/cut, repetition/difference, life/death... —, and this exploration
also applies to the "drawings" suspended along the two walls, made on paper soaked in
black wax, with the texture and colour of black bile. When exposed to the heated wax,
the chemical of the paper dissolves and transfers the drawing to another sheet, as if
reborn, metamorphosed, after suffering a borderline event, a pressure, or depression,
intolerable. The survival of these forms, that in Mudas were somewhat sepulchral, relied
thus on an almost sacrificial transition, to which they resisted only because the weight
turned into lightness and the fall became levitation. Throughout the walls, the drawings
represent fragments or moments of an orbit, the Saturn's orbit, from which we can
glimpse a ring, there the proximity of the star, then only its absence in a dark
uniform, so we can perceive again the rings, or the complete circle. Following Saturn’s
movement, the viewer circulates through the room in the front position of a horizon
observer, but it remains to be decided whether it is he who orbits around the
melancholic planet, or if, on the contrary, he is the last one who hovers around him,
making his presence be felt sometimes close, sometimes distant, sometimes emerging in
the world with his rings, sometimes disappearing.
Comprising, from drawing to drawing, the Saturn's orbit, the visitor walks through the
room until he returns to his starting point. But unlike what happened in Mudas, here
Hélder Folgado guides the visitor by the Sun, exposing him to the gold of its light, to
the warmth that gives life, to the generous irradiation, before making him continue on
the ascending path to the third part of the exhibition, its final but infinitely
renewable point.
SÍTIO DO PONTO
3.
O itinerário termina efectivamente no chamado Sítio do Ponto, localizado no cimo da
montanha no Paul da Serra, uma localização com uma perspectiva de 360º sobre o
território da ilha e sobre o seu confinamento com o mar. O terceiro e último momento do
ciclo ascendente, que a instrução do carimbo à saída do Mudas exortava o visitante a
procurar ao anoitecer, é um ponto de observação, um marco cilíndrico maciço que serviu
em tempos de vigia florestal e marítima. Tendo inicialmente considerado fechar a
exposição com uma observação de Saturno por telescópio, o encontro casual com este
elemento arquitectónico em estado de abandono sugeriu a Hélder Folgado a substituição da
observação do planeta por uma contemplação a olho nu da abóbada celeste. Com cerca de
três metros de altura, o estuque branco estalado e um aspecto algo decadente, o Ponto
terá tido originariamente oito degraus feitos de pedras de basalto, tendo o segundo
degrau abatido e restando agora apenas sete, que o serpenteiam e estabelecem, sem
qualquer intervenção do artista, aproximações com as sete peças e os elementos
circulares expostos nas Mudas e nos Prazeres.
O Ponto consubstancia igualmente, e surpreendentemente, a síntese cilíndrica de um cubo
e de uma esfera, os elementos nucleares desta exposição, sendo ainda que a sua estrutura
evoca a escada de sete degraus encostada à parede da casa ou da torre da gravura de
Dürer, num ponto elevado de onde o melancólico também avista o mar. A escala deste
antigo lugar de observação, que reúne de modo panóptico os pontos de vista possíveis
sobre o território da ilha e sobre o mar, é quase humana, sugerindo um plinto à espera
de um corpo. O topo forma um círculo com dimensões similares às dos círculos das Mudas e
dos Prazeres, nele cabendo um corpo humano deitado. Assim, quando em pé sobre o Ponto, o
melancólico acede a um ponto de vista elevado, recuado, separado da totalidade que
abarca e à qual se sente, de algum modo, externo ou alheio — um ponto de vista total,
cabal, análogo àquele que, em tempos, considerámos divino. Mas se o seu corpo ceder ao
peso, à materialidade de que é feito, se consentir na sua condição física, natural,
humana e mortal, o melancólico deixar-se-á cair sobre o Ponto e, renunciando à
perspectiva da totalidade, acolherá, talvez com suave gratidão, a força da gravidade —
descobrindo a sua vastidão interior, o inferno e o céu dentro de si.
A noite terá, entretanto, caído sobre a Terra e o melancólico, deitado de costas e
cedendo ao seu peso, poderá ter por horizonte o céu estrelado. Contemplando-o cumprirá o
movimento de ascese que esta exposição propõe — um movimento de entrega ou suspensão de
si, de suspensão do saber, de suspensão talvez até da própria arte. Poderá, então,
aceder à experiência contrária à da separabilidade, da transcendência, da distância em
relação ao mundo e à vida na Terra: a experiência de fazer parte de um todo, de
participar naquilo que sem fim o excede, e que excede o próprio tempo.
3.
The itinerary effectively ends at the so-called Sítio do Ponto, located on top of the
mountain at Paúl da Serra, a location with a 360º perspective on the island's territory
and its boundary with the sea. The third and last moment of the ascending cycle, that
the stamp instruction at Mudas' exit exhorts the visitor to look for at nightfall, is an
observation point, a solid cylindrical landmark which served in times as a forest and
sea watch. Having initially considered closing the exhibition with an observation of
Saturn by telescope, the casual encounter with this architectural element in a state of
abandonment suggested to Hélder Folgado the replacement of the observation of the planet
by a contemplation with the naked eye of the celestial vault. With about three metres
high, the white cracked stucco and a somewhat decadent aspect, Ponto would originally
have had eight steps made of basalt stones, the second step having collapsed and now
only seven remain, which wind it up and establish, without any intervention from the
artist, approximations with the seven pieces and the circular elements displayed in
Mudas and in Prazeres.
Ponto also embodies, and surprisingly, the cylindrical synthesis of a cube and a sphere,
the core elements of this exhibition, whose structure evokes the seven-step ladder
leaning against the wall of the house or the tower of Dürer's engraving, at an elevated
point from where the melancholic also sights the sea. The scale of this ancient place of
observation, which gathers in a panoptical way the possible points of view over the
island's territory and over the sea, is almost human, suggesting a plinth waiting for a
body. The top forms a circle with similar dimensions to the circles in Mudas and
Prazeres, where a human body fits lying down. Thus, when standing on Ponto, the
melancholic accesses a high, backward point of view, separated from the totality that
embraces, fully, and to which we feel, in some way, external or oblivious — a total,
full point of view, analogous to the one we once considered divine. But if his body
gives in to the weight, to the materiality of which it is made, if he consents to his
physical, natural, human and mortal condition, the melancholic will let himself fall on
Ponto and, renouncing the perspective of totality, he will perhaps welcome, with gentle
gratitude, the force of gravity — discovering its interior vastness, hell and heaven
within itself.
The night will have fallen, meanwhile, on Earth and the melancholic, lying on his back
and giving in to his weight, may have the starry sky as his horizon. Contemplating it
will fulfil the movement of asceticism that this exhibition proposes —a movement of
surrender or suspension of oneself, of suspension of knowledge, perhaps even of art
itself. He will then be able to access the experience contrary to that of separability,
of transcendence, of distance from the world and life on Earth: the experience of being
part of a whole, of participating in that which endlessly exceeds him, and which exceeds
time itself.
4.
Somos melancólicos, nós, ocidentais. O nome Ocidente indica-o, procedendo da palavra ‘ocaso’, que designa a trajectória solar declinante em direcção à noite, o fulgor derradeiro daquilo que vai desaparecer, qualquer coisa de ardente e triste, no dizer de Baudelaire. Ocidental é igualmente a linha para onde o olhar converge e se detém, quer queira, quer não — o horizonte ou o limite do mundo, que infinitamente se oferece e se furta. Entrada e saída, chegada e partida, a linha-limite é também o momento-limite para o qual tudo tende, pende ou cai, o limiar entre o dia e a noite, já não o dia, que oferece o mundo, e ainda não a noite, onde o mundo se retira. O Ocidente ama essa hora que o define como um auto-retrato, como uma imagem da impossível supressão do tempo, o seu mais profundo e mais desenganado anseio. A melancolia é a experiência dessa impossibilidade, a despedida relutante, uma demora teimosa entre ser e desaparecer, que são as formas de existir no tempo. O tempo dá, o tempo tira — podia ser este o mote que define a nossa cultura, e ele é certamente o lema da melancolia, que a exposição de Hélder Folgado configurou de modo exemplar.
4.
We are melancholic, we Westerners. The word “Ocidente” (West) indicates it, coming from the word “ocaso”, which designates the declining solar trajectory towards the night, the ultimate glow of what will disappear, something hot and sad, in the Baudelaire's words. West is also the line towards the eye converges and stops, whether we like it or not — the horizon or the limit of the world, which infinitely offers itself and steals itself away. Entrance and exit, arrival and departure, the boundary line is also the boundary moment towards which everything tends, hangs or falls, the boundary between day and night, no longer the day, which offers the world, and not yet the night, where the world withdraws. The West loves this hour which defines it as a self-portrait, as an image of the impossible suppression of time, its deepest and most disillusioned longing. Melancholy is the experience of that impossibility, the reluctant farewell, a stubborn delay between being and disappearing, which are the ways of existing in time. Time gives, time takes away — this could be the motto that defines our culture, and it is certainly the motto of melancholy, which Hélder Folgado's exhibition has shaped in an exemplary way.
5.
A ilha da Madeira é uma extremidade ocidental do Ocidente, situada já em latitude
tropical. De um ponto de vista não geográfico, essa localização sugere o encontro dos
dois extremos mais radicais: o da imemorial origem da humanidade e o momento,
inimaginável, mas sempre pressentido, do seu fim — e que o nome ‘Ocidente’ profetiza.
O Atlântico, a imensidão oceânica para a qual tende ou pende cada hora de cada dia, o
Atlântico navegável, mas inabarcável, cerca esta ilha onde o Sol se põe ainda mais
devagar, ou mais tarde. Quem somos? ou Quem sou? — é a pergunta abissal que o mar
devolve àquele que foi desde sempre melancolicamente arrastado pela vertigem de
perguntar.
É de supor que os ilhéus sejam mais vulneráveis à mesma vertigem, à mesma ausência de
resposta, a isso a que se chamou a melancolia, a estadia no abismo de ser sem porquê. Na
Madeira, esse vazio, que o silêncio do mar incessantemente ecoa, convive com uma
exuberância natural, com uma injustificável prodigalidade de seres e formas e recursos,
que torna a existência da vida humana ainda mais perturbante. Porquê tanto ser cercado
por um imenso nada líquido? Que significa este paradoxo de miséria e abundância, um
deserto oceânico rodeando tamanha profusão, esta dissonância entre privação e dádiva? O
humano foi o último a chegar aqui, trazendo como única certeza a sua partida sempre
iminente, o desaparecimento sempre prévio ao saber de si. Ora, se a morte é certa, para
quê tantas flores, frutos, plantas exóticas, árvores sem fim? Para quê a beleza destas
praias? (a praia é, como se sabe, uma reconfiguração moderna do Éden no imaginário
ocidental).
A paisagem da Madeira articula, de um modo único, as imagens antiga e moderna do
paraíso. Mas a experiência do ilhéu é a experiência por excelência melancólica, a
experiência da separação, do exílio e da lonjura com que a todo o instante o oceano o
confronta. Não é, portanto, de excluir que, tal como o autor desta exposição, cada
habitante desta ilha abrigue em si um anjo absorto na distante linha do horizonte (a que
outra artista madeirense também deu, aliás, uma forma). E que, de face apoiada na mão
esquerda, e dominado pela irresistível força saturnina, repita, talvez sem cessar, no
silêncio pulsante do seu coração,
Espero que o amor enleve a minha melancolia.
Maria João Mayer Branco
Lisboa, Setembro 2018-Setembro 2020
5.
Madeira Island is a western end of the West, already situated in a tropical latitude.
From a non-geographical point of view, this location suggests the meeting of the two
most radical extremes: that of humanity's immemorial origin and the unimaginable moment,
but always sensed, moment of its end — and which the name "Ocidente" prophesies.
The Atlantic, the oceanic immensity towards which every hour of every day tends or
hangs, the navigable, but unassailable Atlantic, surrounds this island where the Sun
sets even more slowly, or later. Who are we? or Who am I? — is the abyssal question that
the sea returns to the one who has always been melancholically dragged by the vertigo of
asking.
It is to be assumed that islanders are more vulnerable to the same vertigo, to the same
absence of response, to what has been called melancholy, the permanence in the abyss of
being without reason. In Madeira, this emptiness, which the silence of the sea
ceaselessly echoes, coexists with a natural exuberance, with an unjustified prodigality
of beings and shapes and resources, which makes the human life's existence even more
disturbing. Why so many beings surrounded by an immense liquid nothing? What does this
paradox of misery and abundance means, an oceanic desert surrounded by such profusion,
this dissonance between privation and gift? The human being was the last to arrive here,
bringing as his only certainty his always imminent departure, the disappearance always
prior to knowing himself. Well, if death is certain, why so many flowers, fruits, exotic
plants, endless trees? Why the beauty of these beaches? (the beach is, as we know, a
modern reconfiguration of Eden in the Western imaginary).
Madeira's landscape articulates, in a unique way, the ancient and modern images of
paradise. But the islander's experience is a melancholic experience par excellence, the
experience of separation, of exile and distance with which the ocean confronts him at
every moment. It cannot, therefore, to be excluded that, like the author of this
exhibition, each inhabitant of this island holds within himself an angel absorbed in the
distant line of the horizon (which another Madeiran artist also gave a shape). And that,
with his face resting on his left hand, and overwhelmed by the irresistible saturnine
force, he repeats, perhaps ceaselessly, in the pulsating silence of his heart,
I hope love enchants my melancholy.
Maria João Mayer Branco
Lisbon, September 2018-September 2020